sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Portas?


Espetáculo: De dentro.

Montagem: Cia Experimental de Dança Waldete Brito.



Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 



Seis mulheres. Seis portas. Amores, dores, laços desfeitos, encontros interrompidos, tensos triângulos, dança com a solidão. A urgência da travessia se impõe desde cedo; as portas se abrem para revelar o estranho abrigo que acolhe as damas – por ora – solitárias: o vazio negro, a desoladora solitude de quem perdeu o par no baile trágico das paixões.

– Deixo pra trás a dor da saudade! Parto rumo ao desconhecido na certeza de levar comigo somente a metade que me liberta de ti.

É o que parecem gritar as seis damas por meio da poesia de seus gestos e movimentos. Não demora muito para conhecermos os demais habitantes deste abrigo sombrio: dois cavalheiros e outras duas damas que se juntam as seis primeiras para dançar “o lugar entre” estabelecido pelas seis portas.

A proposta de experimentação cênica delineada, de modo breve, acima é da Cia Experimental de Dança Waldete Brito. Trata-se do espetáculo intitulado De dentro, uma das primeiras montagens do repertório da Cia que completa em 2013 quinze anos de pesquisa-artística ininterrupta. Dirigida pela professora Waldete Brito a Cia se notabiliza ao longo destes anos pelos processos de criação em Dança Contemporânea desenvolvidos de modo colaborativo com os atuantes, tendo como principal procedimento criativo a técnica da improvisação.

Em De dentro a vitalidade da encenação assenta-se exatamente no jogo estabelecido com, e a partir da cenografia. As seis portas que também se transformam em janelas e pequenas passagens inferiores oferecem aos atuantes uma infinidade de possibilidades de criação coreográfica, desde os gestos cotidianos mais simples de abrir e fechar as portas até os movimentos acrobáticos mais ousados – como o se dependurar de cabeça pra baixo. Neste sentido, por ser funcional a cenografia assegura espaço para experimentação dos atuantes e potencializar por meio deles uma série de signos abertos para a leitura do espectador.

No entanto, se a funcionalidade da cenografia dá notoriedade e fundamenta o trabalho de experimentação dos atuantes, o mesmo não se pode dizer da visualidade. A combinação das cores e dos detalhes pintados no cenário fragiliza a forte simbologia que deveria estar presente nas portas. Excetuando os momentos em que pelo uma delas encontra-se aberta contrastando com o fundo negro, nos demais nos deparamos com uma imagem chapada onde as seis portas parecem diluir-se num decorativismo estático. Perdemos com isso toda a simbologia assinalada por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant do “local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido” (2007, p. 734). Perde-se ainda, seguindo as passagens dos mesmos autores, o “valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um além...” (Idem, p.735).

Estendo este problema para os momentos em que ação dramática se desconecta da cenografia e ganha o amplo espaço de atuação delimitado pelo linóleo. Nestes momentos identifico os atuantes desenvolvendo uma serie de movimentos expressivos interessantes e bem executados no âmbito da forma, mas que ao não dialogar diretamente com o eixo dramático que considero central da montagem negligencia o âmbito do conteúdo proposta pela encenação – isto é, as portas – e, neste sentido, poderiam ser realizados em qualquer outro espetáculo de dança. Deste modo, e nestes momentos específicos ocorre com a cenografia deste espetáculo, algo diferente da visão de Gianni Ratto: “Continuo defendendo o conceito do espaço cênico considerado como uma atmosfera dramática que atua no espetáculo de forma sensorialmente dramática. Ataco violentamente o decorativismo (...).” (1999, p.19)

Outro ruído que julgo importante comentar diz respeito as duas ou três entradas na área de atuação do linóleo realizadas no sentido platéia palco. Os atuantes surgem da platéia e adentram a área de atuação sem que se estabeleça relação direta com a cenografia. Isto me fez pensar: estamos todos dentro do mesmo abrigo sombrio? As portas determinam o lugar de entrada ou de saída? Estou dentro ou fora do ambiente dramático? Estas questões embora não tenham a pretensão de determinar qual a perspectiva que o espetáculo deve adotar, visam contribuir para tornar mais clara a relação palco platéia.                                   Uma última questão que gostaria de abordar refere-se à interpretação dos atuantes. Sei dos perigos de tocar no assunto e um deles é não conseguir me fazer entender com clareza a partir dos termos que utilizo; e outro, a meu ver ainda mais perigoso, é o uso de um arcabouço conceitual oriundo da linguagem do Teatro e não da Dança para refletir uma prática que se encontra no âmbito desta última. Assumo os riscos com o intuito de provocar uma tensão reflexiva entre essas duas linguagens que no ocidente seguem rumos autônomos.

Assim como em outros espetáculos de Dança que já tive oportunidade de presenciar, observo nos atuantes de De dentro um modo de interpretação que recorre a máscaras faciais expressivas para comunicar os sentimentos e/ou idéias que estão sendo colocados em cena; dentre elas invariavelmente são acionadas as máscaras que correspondem aos seguintes sentimentos: angústia, sofrimento, alegria, ternura, raiva e desespero. Olho para os atuantes reconheço estas máscaras e sinto uma enorme dificuldade em acreditar que naquele exato momento da apresentação estes sentimentos estejam de fato aflorando em cada um deles. Neste momento sinto que lhes falta vida, tal como reivindicava o grito monstruoso proferido por Artaud:

(...) com este teatro nós reatamos com a vida em vez de nos separarmos dela. O espectador e nós mesmos não poderemos nos levar a sério se não tivermos a impressão muito nítida de que uma parcela de nossa vida profunda está empenhada nesta ação que tem por quadro o palco. (...) O espectador que vem à nossa casa saberá que ele vem se oferecer a uma operação verdadeira onde não somente seu espírito mas seus sentidos e sua carne estão em jogo. Se não estivéssemos persuadidos de atingi-lo o mais grave possível, nós nos consideraríamos inferiores à nossa tarefa mais absoluta. Ele deve estar de fato persuadido de que somos capazes de fazê-lo gritar. (2006, p.34)                

Talvez minha grande frustração ao sair do teatro em diversas ocasiões – não somente em espetáculos de Dança, mas também de Teatro – encontre-se no fato de saber que cada atuante detém um poder enorme capaz de promover verdadeiros choques existenciais no espectador, mas que por algum motivo negligenciam ou não valorizam este poder. Ficamos então nas bordas da vida: a angústia, o sofrimento, a alegria, a ternura, a raiva e o desespero são apenas evocados como parceiros de uma dança que me recuso a dançar, como portas que trago pra cena, mas que me recuso a atravessá-las.

Em De dentro temos seis portas para atravessar. Quem ousará atravessá-las?

Edson Fernando

19.09.2013       



CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.


GUINBURG, J.; Silvia Fernandes Telesi; Antonio Mercado Neto (Org.) Antonin Artaud: Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2006.



RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 1999. 




 

domingo, 8 de setembro de 2013

Anihumalismo



Espetáculo: Animalismo – A nova ordem mundial.
Montagem do GTU – Grupo de Teatro Universitário da UFPA.

Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 



Humanos enjaulados. A imagem que se apresenta ao fundo do palco choca e remete imediatamente a questão central da montagem: o quanto de animalismo tem a humanidade? O olhar fixo dos cerca de quinze atores dentro da jaula espreitando os espectadores na entrada do espetáculo oferece o espelho cruel para que cada um reflita sobre a questão. Por tão semelhantes, olho para os atores – que ali representam animais – e vejo a face desumana do homem; olho para o humano e reconheço a face perversa do porco Napoleão. O jogo entre estas aparentes bipolaridades ergue uma interessante dialética poética que sustenta todo o argumento de Animalismo – A nova ordem mundial: é a humanização dos animais que gera desequilíbrio, desigualdade e violência; não obstante, é o animalismo dos animais – pleonasticamente falando – que conduz ao derradeiro drama da fábula. Já não consigo mais saber quem é humano e quem é porco; resta apenas a certeza vacilante e desalentadora: a humanidade é porca.  
Estabelecida nestes termos é impossível não perceber a encenação dialogando aberta e diretamente com o momento histórico de agitação política que varre o país deste as manifestações de Junho. Mesmo o espectador mais desatento e desavisado é confrontado com referencias explicitas às demandas de Junho. Exemplo disso é o cartaz que as Galinhas portam em sua cena de protesto contra o porco Napoleão, uma parodia de um dos lemas do Movimento Passe Livre: “Não é pelos vinte centavos, é pelos ovos”.
No entanto, o que dá vigor na montagem não são as referencias diretas a nossa conjuntura e sim nas sugestivas metáforas dos papeis sociais que os animais desempenham na trama. E neste sentido, uma das mais fortes é o papel dos Cachorros. Mais do que simplesmente explorar a imagem do cão como guarda, nos deparamos com a imagem do aparelhamento militar e repressivo do estado. Insanos e sedentos de agressividade – como os PMs que reprimiram as primeiras manifestações populares de Junho – esses cães simplesmente vociferam seus gruídos ecoando o sem sentido de sua ação repressiva. Aliás, a pretexto de manter a ordem e a preservação do patrimônio público a ação militarizada do estado brasileiro sempre abusou do uso excessivo da força – seja na repressão aos movimentos sociais, seja no modo preconceituoso e truculento como atua com a classe pobre do Brasil. Assim, os Cachorros da fábula em questão cumprem exemplarmente seu papel de carrascos repressores não poupando esforços para conter o levante das Galinhas. A tática é simples: encurralar e reprimir a peso de cassetetes e gás de pimenta. Difícil é dizer quem se locupleta com tamanho sadismo: os Cachorros do porco Napoleão ou os animais uniformizados – mais sem identificação – dos porcos disfarçados de estadistas.
O galinicídio encerra a participação canina com requintes de crueldade. Se na forma, a morte impiedosa da galinácea alude tragicamente às câmaras de gás nazistas, no conteúdo infelizmente a tragédia é bem mais próxima de nós, como no caso do massacre dos dezenove membros do Movimento Sem-Terra ocorrido em Abril de 1996. Em ambos os casos – no primeiro num estado totalitário e no último num estado democrático – o braço armado do estado agiu impiedosamente; e no caso local os cento e cinqüenta e cinco policiais envolvidos seguem impunes. O estado não só late como morde ferozmente, tal como os cães de Napoleão.
Se a metáfora dos cães encontra sonoros ecos com nossa sociedade o que dizer da retórica dissimulada do porco Garganta? O ardiloso Garganta é o braço direito do suíno Napoleão. Aliados primeiramente com Bola de Neve, os três porcos lideram a revolução contra os humanos, vencem Jones – espero que a grafia esteja correta – assumem o controle da granja e instalam os sete mandamentos do Animalismo. Mas se num primeiro momento temos a máxima “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”, ideologia defendida por Bola de Neve opondo humanos e animais, logo a disputa pelo poder entre os próprios animais dará a vitória ao porco com nome de imperador. Garganta exerce papel decisivo para consolidação do novo líder, pois é ele quem convence o coletivo dos animais, dissimula e manipula os fatos e traça acordos políticos escusos com os antigos inimigos, os humanos. Trágica coincidência com nosso sistema político eleitoral vicioso, repleto de corporativismo e ideologias vãs. O nível de desfaçatez atingiu patamares tão absurdos que dificilmente o porco Garganta conseguiria sobreviver em meio as nossas raposas do Congresso e Senado Federal, mas também de nossas Assembléias Legislativas locais. Se tornaria ainda alvo fácil para estas raposas profissionais ou teria certamente elevada concorrência com as aves de rapinas que também povoam aquelas casas.
Na abordagem técnica da montagem merece destaque o trabalho de pesquisa das posturas corporais para composição de cada papel dos animais. As bases corporais que sustentam o papel das galinhas, cabras, égua, cavalo, ovelhas, porcos, urubu e cachorros – espero não ter esquecido nenhum animal – primam pelos detalhes nos dedos das mãos e na sustentação do peso na meia ponta. A curvatura da coluna vertebral e o trabalho de equilíbrio do corpo desenvolvido pelo elenco impressionam pela naturalidade e desenvoltura em cena durante quase duas horas de trabalho.
No entanto, reservo-me o direito de compartilhar minhas inquietações com alguns elementos da montagem. Primeiramente a questão dos intervalos. Embora reconheça que a montagem siga uma estrutura épica, o primeiro intervalo me pareceu desnecessário, pois ele ocorre ainda no decorrer das primeiras ações da peça. Fiquei com a impressão de que a direção objetivou informar ao espectador, logo no início, que se tratava de uma montagem com orientação para o teatro brechtiano, mas a pouca naturalidade do elenco no momento do intervalo – aproveitam para beber água – faz o procedimento recair num formalismo desnecessário. Bem diferente de outro momento na parte final da montagem em que o elenco interrompe as ações, abandona as posturas corporais dos animais para em seguida retomar o andamento da cena, tudo com compasso marcado a partir da trilha incidental feita pela banda ao vivo. Diferente também das intervenções feita pelos narradores, momento que o elemento novamente interrompe o fluxo das ações da peça. Então, penso que é possível e perfeitamente adequado a montagem estes momentos de quebra da quarta parede, mas procurando evitar os formalismos e os excessos. 
A cena musical da Cabra alfabetizando os demais animais valendo-se do recurso didático de uma canção com batida brega ou tecnobrega também me deixou inquieto. Compreendo o deboche que a cena provoca com o próprio movimento em voga no estado, mas também não posso deixar de pensar que nenhum lugar esta livre dos ditames da indústria cultural. Já somos bombardeados insistentemente pelos meios de comunicação de massa com as musicas chicletes de duplo sentido e danças de apelo sexual. E parece que só conseguimos formular uma crítica a isso, reproduzindo a mesma formula absolutamente desgastada pela própria indústria; ficamos somente na paródia. Não conseguimos enfrentar as engrenagens desta indústria oferecendo uma coisa nova, ácida, questionadora; então, caímos num ciclo vicioso, pois fazemos girar as mesmas engrenagens que criticamos.
Estas inquietações de forma alguma pretendem ofuscar o valor da montagem. O trabalho dirigido por Marcelo Andrade, aluno da Licenciatura em Teatro da UFPA, tem o mérito inquestionável de dialogar de forma criativa e perturbadora com nossa conjuntura política. A montagem do Grupo de Teatro Universitário (GTU) que é uma ação do projeto Novos Encenadores tem ainda o mérito de proporcionar espaço para a experimentação teatral, no melhor sentido da acepção.
Por fim, uma última reflexão. A cena final nos convida a ultrapassar os limites estabelecidos entre a ficção e realidade: o elenco inteiro invadi o palco munidos de cartazes com a demanda pessoal de cada um. É uma reivindicação dos animais ou dos atores? Pelo teor peculiar das frases, certamente trata-se de um posicionamento do elenco diante das mazelas da nossa sociedade: Mais direitos, Menos Feliciano; Abaixo a ópera, queremos cultura popular; Fora Paulo Chaves. No entanto, o grito expresso nos cartazes continuarão aprisionados na ficção se não ultrapassarem a porta do Teatro. Qual o lugar e o tempo da revolução que queremos?        
Edson Fernando
07.09.2013