segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Confluências de UM lugar entre

Crítica ao espetáculo UM, por Edson Fernando

Quando se está “entre” nos é permitido gozar da suspensão das categorias absolutas, pois no estado intermediário as coisas ou seres adquiriam uma potência ambivalente que retroalimentam sua condição mais elementar. Na adolescência, por exemplo, deixamos a infância pra trás sem, no entanto, termos alcançado a idade adulta e este estado intermediário proporciona a situação paradoxal de um ser – o adolescente – que deixou de ser – criança – mas ainda não se tornou o ser – adulto. Ele, portanto, encontra-se em estado de suspensão, pois deixou de ser, sem ainda ter se tornado. A adolescência, neste sentido, pode ser considerada uma categoria relativa a um ser em estado de transição.
Se voltarmos esta pequena reflexão para problematizar nossa condição humana em suas múltiplas dimensões – ética, política, econômica, filosófica, sociológica, etc. – poderemos constatar que estar no lugar “entre” de alguma forma nos permite o ultrapassamento de nossa dimensão mais subjetiva, proporcionando-nos a revisão, abstração ou mesmo a subversão de todos os nossos valores instituídos. O mesmo se aplica as práticas artísticas que se colocam como operacionalizadoras destes espaços “entre”, isto é, as práticas que instauram no palco a dimensão e realização de um rito. É o que ocorre com a pesquisa mais recente da Companhia Moderno de Dança no espetáculo UM. É a partir do lugar “entre” que me permitirei tecer algumas considerações à pesquisa que se encontra em andamento.
O primeiro elemento relevante a se considerar encontra-se exatamente no fato da Companhia compartilhar, primeiramente, a pesquisa em andamento por meio de sessões de fruição da obra aberta ao publico para, então, de modo colaborativo posteriormente afinar o espetáculo. Este encaminhamento mostra a maturidade do grupo envolvido na pesquisa e sua responsabilidade e preocupação em encontrar novos meios de compartilhamento dos seus conhecimentos e de sua arte, meios que se estabeleçam para além do entendimento da obra como produto. O processo criativo é importante, tão importante ou até mais importante que a visão mercadológica estabelecida que concebe o artista como mais um trabalhador no meio social. Não causa surpresa, neste sentido, que a pesquisa tenha sido contemplada com o PRÊMIO FUNARTE PETROBRÁS DE DANÇA KLAUSS VIANNA 2013; pelo contrário, mostra o reconhecimento de um projeto maduro que pensa e estabelece sua arte em consonância com as demandas atuais da sociedade.
Assim, as considerações que apresento, a seguir, configuram-se como tentativas de colaboração com o corpo de uma obra que, embora se encontre em andamento, já se mostra plenamente vigorosa e com seu arcabouço processual muito bem estabelecido, ou seja, o lugar do “entre”, ou para ser mais exato, utilizando a nomenclatura de Victor Turner, a esfera da experiência liminóide – espécie de experiência contemporânea que proporciona similaridade ao tempo e espaço instaurados pela liminaridade dos ritos antigos. É por esta lente que discorro agora.
A imponência da área de atuação estabelecida pela arena circular, iluminada por candeeiros de velas e chão de terra – muita terra – imediatamente nos defronta com nossa pequenez diante dos espaços sagrados ou sacralizados. A sacralidade do espaço é completada pela sonoplastia executava ao vivo e, fundamentalmente, pelos atuantes a ritualizar suas ações iniciais. O choque com esta imagem inicial que a Companhia nos oferece é brutal e, talvez por isso, o processo de reconhecimento dos elementos destoantes se imponha também tão imediatamente aos nossos olhos: as cadeiras de plástico brancas, reservadas aos espectadores, rompem a estética de ancestralidade visual formando um anel frio em volta da área de atuação, anel visual apartado de todas as ações intensas que serão vivenciadas pelos atuantes no solo arenoso. E se por um lado temos terra, fogo, água e ar intensamente trabalhados no espaço sacralizado da vivencia do rito, por outro é reservado aos espectadores o plástico das cadeiras e o chão em carpete formando um pequeno fosso que separa o espectador do alcance do solo viripotente da vivência. Desse modo, o contato direto com a terra, capital na relação dos atuantes e sua dimensão gestual ancestral durante toda a vivência, revela-se de modo antagônico com o público por sua relação asséptica com o espectador.
Esta arena, portanto, constrói seu próprio espaço liminóide reservado exclusivamente aos seus iniciados – os atuantes. Assim, dentro dela – arena como espaço liminóide – tudo se passa de modo não rotineiro, numa intensificação da experiência do tempo presente que se opõe veementemente ao comportamento dispersivo e difuso do cotidiano; cada gesto, movimento, canto, sonoridade e ação são realizadas – por boa parte dos atuantes – de modo a ritualizar o espaço. É impressionante como experiências dessa ordem conseguem acionar um comportamento semelhante aos que simplesmente assistem: o público mesmo apartado do espaço e da ação central manifesta respeito a sacralização do lugar e procura manter-se em silencio respeitoso e com o mínimo de gesticulação aleatória possível.
Um elemento em particular, no entanto, nos dá pistas de que o espaço liminóide poderia ou poderá ser estendido ao alcance do público: os três alguidares com banho de ervas. Dois deles se encontram estrategicamente colocados em cada portal de entrada que nos levará ao encontro da arena; mas nenhum tipo de preparação nos é sugerida e nenhum tipo de orientação nos é ofertada pela equipe ou mesmo pelos atuantes. Ficamos a mercê de nossa curiosidade na relação com este elemento tão rico pela simbologia que porta e que é explorada, posteriormente, durante a vivência, por ocasião do banho de purificação dos atuantes. 
Importante frisar que uso o termo “vivência” e não “apresentação” ou “representação” para me referir ao ato proposto pelo espetáculo, posto que aquelas palavras não dão conta da potência operada na esfera do rito e, consequentemente, pelo desenvolvido neste espetáculo. Na experiência linimoíde se “vive intensamente” diferentemente de se “representar intensamente”. Trata-se de uma entrega intensificada por uma experiência de restauração da parte – o homem – com o todo – o universo – intimamente ligado à ideia de uma dimensão harmônica e existencial perdida. Isso é possível de notar em boa parte dos atuantes quando vemos seus corpos num processo de ritualizar o movimento, diferentemente de alguns outros que permanecem na esfera da execução coreográfica dos movimentos. 
Ora, mas poderíamos objetar que por se tratar de um espetáculo de Dança, realizado por uma Companhia de Dança, nada mais natural do que assistirmos aos movimentos tecnicamente coreografados, ou seja, nada mais natural do que os atuantes dançarem suas coreografias. A questão que proponho, então, para refutar ou não tal objeção é a seguinte: UM pretende ser meramente um espetáculo de dança convencional? O que e como se pretende dançar em UM? O que interessa na construção da pesquisa do movimento em UM? O que se deseja ao se aproximar e se apropriar da esfera do rito? É possível tal aproximação sem que haja mutuas trocas entre as esferas da dança e do rito? É possível passar impune pela esfera do rito? Toda dança é rito e vice e versa? Quando UM deixou de ser dança para ocupar o lugar “entre” Dança e Rito?
Podemos ensaiar parte das respostas observando o que ocorre no fragmento final da vivência: após o ato de purificação que envolve canto e o banhar de todos os atuantes, os mesmo despem parte de sua indumentária e se dirigem solenemente para fora da arena, longe da vista do publico. Quando retornam, já desprovidos do restante das indumentárias do rito, o estado que se apodera de todos é de ordem completamente diferente do anterior: todos agora circulam pela arena em movimentação circular e rítmica acelerada, grunhindo sons em estado de êxtase delirante executando movimentos em sincronia notoriamente coreografada. A transformação é tão radical na comparação com tudo vivenciado e visto anteriormente que ouso dizer que este retorno a arena não somente não se coaduna com a proposta desenvolvida até então, como também provoca uma mácula no próprio percurso processual da pesquisa. Fico então, com a impressão de que o trabalho já havia acabado antes deste último retorno dos atuantes.
Penso este trabalho como uma confluência “entre” Dança e Rito e, por esta perspectiva, procuro compreendê-lo como uma meta-tentativa ritual de restabelecimento da harmonia das partes – Dança, Teatro, Música, Performance, Visualidade – com o todo – o próprio Rito como síntese produtiva dessas artes. Se aproximar e se apropriar da esfera do rito significa, então, suplantar as barreiras categóricas que separam as supracitadas artes. E isso de alguma forma embaralha o jogo na recepção do espectador, pois ele – via de regra – segue o que está estabelecido convencionalmente, isto é, sua expectativa tenderá sempre para a recepção de um espetáculo de dança. O grande desafio, deste modo, é saber comunicar que o jogo no palco se estabelecerá por outros modos de percepção.
Para tanto, um elemento de crucial importância é o itinerário de entrada e saída do espaço ritualizado. Assim como já mencionei os alguidares no portal de entrada, que podem ser trabalhados como elementos para preparar os que irão adentrar o espaço sacralizado, também deve-se atentar para o modo como todos deverão ser conduzidos de volta  após o encerramento do ato.  
Há uma premissa de Aldo Natale Terrin que considero muito interessante e que tem me auxiliado a refletir sobre as práticas artísticas que confluem para o lugar do rito: x vale y no contexto ct. A premissa aparentemente sisuda expressa de modo simples que na esfera do rito alguma coisa (x) encontra-se no lugar de outra (y), mas que o jogo simbólico que permite esta permutação depende inteiramente do contexto que é criado. Segundo Terrin, trata-se de um jogo simbólico-místico entre uma ação (x = drómenon) e um mito (y = legómenon) que se estabelece num contexto que permite aos que vivenciam o rito reconhecer uma coisa (x) na outra (y). Entenda-se por contexto a determinação do tempo – duração da ação ritual: início e fim –, preparação do espaço, dos elementos, dos mestres de cerimônia e dos participantes. Sem a devida preparação de algum dos elementos que constituem o contexto do rito, o próprio ficará passível de uma recepção que comprometerá o jogo simbólico-místico proposto.
Observo que no caso das praticas artísticas que se estabelecem na confluência com os ritos, um contexto inadequado inevitavelmente remete a uma ação de representação de um rito ao invés de uma ação de vivencia do rito. E minha principal inquietação é que representar um rito leva o atuante ao falseamento do pólo mítico (y). Vejo então, atuantes executando ações (x) tentando me convencer de que estão desenvolvendo um mito (y) sem, no entanto, professar sua própria fé no que executa; e isso ainda ocorre com parte dos atuantes de UM, como já mencionei anteriormente. Em outras palavras, se cada atuante de UM não conseguir realizar seu próprio rito pessoal, o contexto da obra pode ser ver abalado.
O que me anima bastante ao tecer estas considerações é saber que a Companhia Moderno de Dança encontra-se com o processo criativo em andamento e maduramente aberta para pensar e re-pensar sua prática. Evidentemente que as considerações tecidas aqui, longe de encerrar alguma verdade, apenas prestam-se a tencionar a obra para o lugar de onde ela mesma se erigiu. E, neste sentido, é importante não esquecer que a obra se erigiu “entre” a dança e o rito, lugar privilegiado para a revisão, abstração ou mesmo a subversão de todos os valores instituídos. A longevidade que desejo a esta obra nos dará pistas para pensarmos, posteriormente, sobre a responsabilidade de nos reconhecermos como homens comprometidos a reinventar mais que simplesmente as linguagens artísticas, mas recriar nossa relação com o mundo.     
Edson Fernando

21.12.2014       

sábado, 20 de dezembro de 2014

Oração ao tempo: memórias de lembranças que não passam.

Espetáculo: Oração ao tempo.
Credenciais do autor da crítica: Dênis Bezerra é Ator, Diretor e Prof. Dr. da UFPA.

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo.

Caetano Veloso

O espetáculo Oração ao Tempo, do segundo ano do curso Técnico de Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPa, dirigido por Marton Maués e Jorge Torre, provocou-me a tecer algumas linhas sobre o trabalho. Tive a oportunidade de assistir duas vezes, na estreia e na sexta-feira, em ambos os momentos fui levado às minhas memórias, e à intensa relação que tenho com os velhos.
Dividido em quinze quadros, o espetáculo organiza-se como uma grande instalação na qual os espectadores podem interagir e trocar experiências com os personagens. Cada história perpassa pela temática da velhice, de um momento na vida do homem cujos sentimentos se misturam: a morte, a lembrança da juventude, a espera pela família, por um carinho, um afeto, uma mão para tocar peles marcadas pela história, sedentas de calor humano.
São diversos universos apresentados a nós espectadores, que precisamos nos deslocar pelos vários espaços e estabelecer conexões com as histórias de vida narradas. Cada detalhe é especial, o figurino, a cenografia, mas principalmente a interpretação dos atores em comunhão com o passado e presente juntos.
As palavras que aqui teço não são tomadas pelo olhar apurado de um exercício crítico, mas tocadas pelas sensações que senti ao presenciar esse digno trabalho, porque ele é para fruir, e foi isso que ocorreu comigo, a fruição, deletei-me com o espetáculo, cheguei ao estado de prazer relatado por Roland Barthes, em O prazer do texto:
O que eu aprecio, num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar. Nada a ver com a profunda rasgadura que o texto da fruição imprime a própria linguagem, e não a simples temporalidade de sua leitura.

Esse estado de fruição foi alcançado em vários momentos. No primeiro dia, pelo impacto de tudo; no segundo, pela sensação de apreciar o que no dia anterior não tinha sido possível, devido à emoção que me arrebatou, e por ter presenciado novamente essas histórias. Resolvi interagir mais, mergulhar com mais profundidade pelo café servido, pela rede que me lembra minha avó, pelos brinquedos, discos, vitrolas, mosquiteiro, álbuns, fotos que representam várias trajetórias de pessoas que não conheci, mas que se apresentaram pelo corpo dos atores ali em comunhão comigo.
Com relação à interpretação, quase todos me convenceram, cada detalhe, a transformação de um corpo jovem, pulsante, que aos poucos vão ganhando as marcas do tempo. As mãos trêmulas, o andar marcado pelo peso do tempo, as vozes num compasso da experiência.
Os elementos cenográficos me permitiram viajar para as minhas histórias, aos momentos os quais convivi com velhos, tanto em minha família, quanto em outras oportunidades do dia-a-dia, quando encontramos senhoras perfumadas, arrumadas em suas janelas à espera de alguém ou de um afeto, a contemplar a passagem do tempo ou à chegada do fim, pois como diz Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: lembranças de velhos,
A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembranças. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devaneios.
Quero destacar duas cenas. A primeira é a de um senhor em diálogo com as lembranças de sua esposa, representada pela pintura na parede. Ele desenha para não esquecer. Assim, sobre os papeis surgem cores e formas, imagens e recordações de sua vida, da mulher amada, materializada pelo deslizar dos lápis coloridos.
A outra cena, é da velha senhora, envolta por seu mosquiteiro-casa, à espera de seu amado filho que nunca vem, e que mergulha na esperança desse encontro, sustentada pelo cordão da realidade, que a faz emergir do mar da saudade para o aguardar cotidiano. Esse “quadro” me fez lembrar das várias imagens de mulheres que na história da humanidade esperam por seus filhos, maridos, amigos. O fiar silencioso enquanto Eles não retornam a sua Ítaca.
Só tenho a agradecer à equipe de Oração ao tempo, por ter proporcionado esse momento de lembranças, com cheiros de memórias em cada álbum, em cada imagem, em cada história apresentada.

O tempo tem tempo de tempo ser,
o tempo tem tempo de tempo dar,
ao tempo da noite que vai correr,
ao tempo do dia que vai chegar...


Denis Bezerra.
20.12.2014


sábado, 13 de dezembro de 2014

Sobre a Maresia dos Tempos de Experimentação

Espetáculo: Maresia. Grupo Projeto Vertigem.
Crítica produzida por Edson Fernando, Ator e Diretor Teatral.

Enquanto observava o bamboleio das três atuantes numa desenvoltura lúdica com os colares de conchas do mar durante a apresentação do espetáculo Maresia, do Projeto Vertigem, as questões inquietantes que alimentam esta reflexão me atravessaram: até quando a ênfase dos processos criativos em artes cênicas recairá na experimentação? Até que ponto esta ênfase não esgota – ou esgotou – a essência das artes do espetáculo? Em que medida a experimentação fragiliza os condicionamentos técnicos necessários para a manutenção da qualidade da cena? Quais os desdobramentos econômicos, sociológicos, filosóficos, políticos e ideológicos do uso indiscriminado da experimentação? Quando o uso da experimentação se volta contra os criadores e os tornam agentes anacrônicos da história e da cena local?
Embora estas questões tenham me atravessado durante a apresentação do espetáculo supracitado, elas não se dirigem especifica e exclusivamente a este grupo e sua montagem, mas estabelecem relação direta com boa parte da produção local em artes cênicas. Por este motivo, penso ser importante repercuti-las com os criadores locais para tentarmos juntos compreender o labirinto poético-conceitual em que nos encontramos. Sempre que necessário, no entanto, tomarei como exemplo, para ilustrar ou aprofundar alguma questão, as cenas de Maresia. É importante ressaltar ainda que, novamente, corro o risco de desenvolver as questões de modo hermeticamente voltado para os criadores, negligenciando, portanto, o papel de mediação com o público que cabe ao crítico. Assumo o risco compreendendo que a função em relevo colocada aqui é a de pensar criticamente a cena e não propriamente o da assinatura de uma crítica teatral.
O primeiro desafio que se impõe é o de saber lidar com os termos e seus desdobramentos conceituais. Então, quando falamos em experimentação no teatro invariavelmente remetemos a diversas práticas contemporâneas: teatro de vanguarda, performance,  teatro-laboratório, teatro de pesquisa, dança-teatro e – a mais em voga recentemente – teatro pós-dramático. Todas, no entanto, apontam para um lugar inicialmente comum: oposição e superação da relação tradicionalmente estabelecida pelo que se convencionou chamar de teatro burguês.
Opor-se e superar tal tradição exige de um processo criativo experimental a revisão de vários elementos estruturantes da linguagem teatral, tais como: destituição do texto como eixo principal; novas e diversas formas de conceber a relação palco-plateia; o público passa a ser parceiro da cena – dependendo da obra, de modo mais contundente e explicito – e não espectador passivo e submisso; atuante como mais um signo dentro do conjunto de elementos da obra – cenografia, sonoplastia, iluminação, figurino; pluralidade de sentidos em oposição ao sentido fechado e unívoco; vulnerabilidade das fronteiras entre as linguagens das artes plásticas, cênicas e performativas; entretenimento, ação política e fruição estética agrupadas – ou diluídas? – num mesmo ato.
Nada disso, no entanto, é novidade por aqui. Basta tomarmos como exemplo o trabalho do grupo Cena Aberta criado na década de 1970 por ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da UFPA e retratado de modo primoroso pela pesquisa histórica de Denis Bezerra. O trabalho inaugural do grupo, Quarto de Empregada, de Roberto Freira – dirigido por Luiz Otávio Barata com atuações de Margaret Refkalefsky e Zélia Amador de Deus – já atesta segundo Bezerra (2013, p.95) o uso de inovações que vão ao encontro de alguns dos elementos citados anteriormente.
Interessante observar como o trabalho deste grupo dialoga com as práticas catalogadas por Hans-Thies Lehman no período que compreende os anos de 1970 a 1990 e definidas como pós-dramáticas. Não somente dialoga como se insere no mesmo período histórico datado por Lehman. Não podemos negligenciar, então, os aspectos eminentemente políticos destacados pelo pensador alemão ao compreender as práticas pós-dramáticas como práticas pós-brechtianas, pois são tentativas diversas de se contrapor ao projeto de subjetivação do sistema capitalista voltado a passivar a percepção estética do público (2007, p.10).
A produção do Cena Aberta, neste sentido, encontra-se em consonância com as premissas pós-dramáticas como podemos atestar visitando os registros de alguns trabalhos emblemáticos do grupo, novamente pela lente de Bezerra (2013, p.100-2): Theastai, Theatron de 1983, dá início a exploração de uma poética fundada na corporeidade e, em particular, ao corpo nu como elogio a liberdade e protesto contra a repressão da Censura do regime militar; Genet: o Palhaço de Deus de 1988, Posição Pela Carne de 1989 e Em Nome do Amor de 1990 – todos dirigidos por Luiz Otávio Barata – compõem a trilogia do grupo que ratifica sua poética alicerçada na corporeidade e valorização da sexualidade além da vinculação à uma linguagem voltada para as origens ritualísticas e religiosas do teatro.
Observo, portanto, que a experimentação no contexto do Cena Aberta desenvolveu-se numa relação dialética entre a necessidade de forjar sua própria poética – forma – e o imperativo político que se impunha para discutir a conjuntura do país e da cidade – conteúdo. Experimentar naquele contexto configurava-se – dentre outras coisas – como ato de legitimação de uma arte de resistência política objetivando um modo de percepção que reconhecesse o público como elemento ativo e transformador do quadro social.
Vinte quatro anos nos separam de Em Nome do Amor, último espetáculo criado pelo Cena Aberta e me vejo em meio as questões que abrem essa reflexão, tentando compreender o labirinto conceitual em que estamos enredamos, sem saber se somos vítimas ou algozes da experimentação. É obvio que temos de considerar que a conjuntura é outra, o regime político é outro e que a formação dos grupos teatrais atende por outras motivações. Não se trata, portanto, de estabelecer uma analogia entre os períodos históricos e as formas de atuação poética-política, mas de procurar compreender como o conceito de experimentação tem potencializado o esvaziamento de uma visão holística que articule forma e conteúdo, poética e ética, arte e política. 
Voltemos, então, a cena que me disparou as inquietantes reflexões: o bamboleio que as três atuantes executam com os colares de conchas do mar. Há nesta ação do bambolear uma dimensão eminentemente lúdica: a descoberta do objeto – sua sonoridade, textura e balanço – sendo explorada no corpo das atuantes e provocando uma brincadeira de bailado entre elas. É notório que a movimentação, a marcação e quiçá a concepção da cena tenham sido estabelecidos a partir da experimentação com este elemento cenográfico – o colar de conchas do mar. Mas o que se estabelece para elem desta ludicidade? Podemos e construímos sentido para esta ação – afinal sabemos desde Ernest Cassirer (1874 – 1945) que o homem é um animal simbólico – mas o que se impõe em cena é o jogo experimental das atuantes com o objeto. Há desse modo, ênfase na experimentação enquanto forma, ao passo que o conteúdo se vê fragilizado e dependente de uma inferência lírica e pessoal do público.
Processo semelhante ao descrito nesta cena de Maresia ocorre com recorrência na produção local modificando-se, via de regra, somente o elemento indutor para o processo de experimentação. Quando isso se dá, fico sempre com a impressão de que cenas como a do “bambolear dos colares de conchas do mar” não foram feitas para serem assistidas e sim para serem fruídas na prática por cada espectador. O curioso é que esse convite por vezes não ocorre, como não ocorreu em Maresia. Ficamos provocados pela ludicidade da ação, mas não somos autorizados a praticá-la no palco e por isso recorremos à construção de um sentido simbólico para a cena. E quando o convite ocorre, inevitavelmente, o que se explora com o público é tão somente a mesma dimensão lúdica da experimentação a partir do objeto. Ou seja, a ênfase da experimentação enquanto forma aprisiona os gestos na dimensão lúdica apartando-os de sua dimensão econômica, política, sociológica, filosófica e ideológica.
Então, poderíamos nos questionar: Em que medida os processos de experimentação que assentam sua ênfase na forma tem contribuído para um posicionamento estratégico e político em nossa conjuntura? Por que continuamos experimentamos? Quem têm se servido desta espécie de experimentação?
Uma constatação lamentável pode ser extraída dos últimos atos organizados coletivamente pela classe artística em nossa cidade, ocorrida por volta de Junho de 2013: nossa capacidade de compreender a experimentação como ato altamente subversivo e implosivo se viu, e se vê, absolutamente desprovida de consistência e caráter histórico. Àquela altura o máximo que conseguimos foi gritar um “Chega!!!” as portas do Teatro da Paz, sem sequer incomodar uma única alma que fruía tranqüila e confortavelmente a abertura do XII Festival de Opera promovido pelo Governo do Estado do Pará. O exercício da experimentação se deu de que modo naquela ocasião? Reproduzimos uma forma de nos portarmos diante do Establishment seguindo os próprios princípios do Establishment: o grito comedido de “Chega!!!” estava pautado pela preocupação da repercussão do ato junto a opinião pública. Então, era perigoso ousar propondo qualquer tipo de experimentação mais radical. A experimentação como ato subversivo, no entanto, se pauta tão somente com vistas a implodir o que já está estabelecido, como mencionamos anteriormente. Nossa ação no que se convencionou chamar de “Movimento Chega”, não ultrapassou, portanto, a dimensão lúdica proposta pelas apresentações artísticas que foram colocadas na frente do Teatro da Paz.                         
É apenas um exemplo do quanto temos que aprender com os métodos que aparentemente são tão corriqueiros e recorrentes nos nossos processos de criação.
Outra questão pertinente é voltada a refletir sobre quem tem fomentado a experimentação como procedimento metodológico legítimo para processos de criação. Em nossa cidade, sem dúvida, merece destaque as Bolsas de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística promovidas pelo IAP – Instituto de Artes do Pará. São treze anos promovendo este tipo de fomento voltado às linguagens da fotografia, instalação, audiovisual, música, teatro, dança, poesia, curadoria e design. O próprio Maresia, do Projeto Vertigem, é resultado de uma dessas bolsas contemplada no ano de 2013. A questão, obviamente, não é afirmar o comprometimento de qualquer projeto vinculado às bolsas do IAP ou de qualquer outra agência financiadora – exemplo disso é a própria obra literária de Denis Bezerra citada anteriormente aqui ou mesmo o resultado do Projeto Vertigem –; muito menos colocar em xeque de modo irresponsável este tipo de fomento tão raro e escasso em nossa cidade quanto à seriedade na aplicação das leis de trânsito. Mas provocar o exercício crítico nos pesquisadores-artistas fazendo-os perceber que é preciso problematizar este lugar e tipo de experimentação. Do contrário, o exercício de ludicidade continuará a ser cada vez mais aprofundado por meio das experimentações mais variadas, em detrimento de uma experimentação que nos favoreça reconhecer nossa capacidade de protagonizar as mudanças desejáveis no momento presente.   
O desafio que atravessa todas as questões levantadas aqui parece ser impor ainda: Por que Experimentamos? Como Experimentamos? Pra que Experimentamos? O propósito não é encontrar respostas absolutas para estas questões, mas voltar o olhar para a própria prática artística compreendendo que na primeira questão – Por que Experimentamos? – encontra-se a dimensão filosófica de nosso trabalho, na segunda questão – Como Experimentamos? – os procedimentos e arcabouço propriamente poéticos do nosso fazer e, por fim, a terceira questão – Pra que Experimentamos? – nos coloca diante de nossa responsabilidade ética em face da conjuntura sócio-político-econômico de nossa sociedade.

Meu desejo é que o exercício crítico voltado a estas questões nos permita discernimento para compreender o presente e não perder os trilhos da história e, quem sabe ainda, perceber e atuar com os elementos que nos levem a descoberta de uma era pós-experimentação.

domingo, 2 de novembro de 2014

Fala que Eu me escuto

Crítica do espetáculo “Ouça Meu filho”,Por Silvia Luz.

Foi num contexto intimista que a Companhia Avuados de Teatro apresentou ‘Ouça meu filho’, uma dramaturgia experimental desenvolvida a partir de histórias cotidianas compartilhadas pelos espectadores. Enquanto relata uma história, o espectador alimenta a construção imaginária edificada na mente de uma atuante que em seguida operacionaliza as ações, dando vida à narrativa.
No final, a atuante propôs uma conversa informal com os espectadores sobre a vivência coletiva do trabalho desenvolvido. “Cada dia de apresentação é sempre compreendido como espetáculo único, eventual, novo, como novas são as histórias trazidas pelos espectadores a cada dia”, informa a companhia teatral.      
Um ambiente com pouca iluminação, num canto desse espaço havia uma pequena mesa com imagens de santos, velas acesas, um copo com água e uma cadeira ao lado. Na parede a tela de um retroprojetor e no chão, especificamente, num dos cantos alguns objetos. O espectador estava sentado bem próximo da cena, em cadeiras, arquibancadas e no chão mesmo. Durante a encenação o retroprojetor era usado para exibir os vídeos da pesquisa.
A atuante senta na cadeira, toma um pouco d’água e começa a falar. Diz que não consegue abrir o coração, quando o assunto é mais íntimo, a partir daí ela relata vários acontecimentos e de repente, fica no meio do espaço cênico e começa a dizer um poema para a mãe dela, tudo meio corrido, ao piscar dos nossos olhos começa a chorar; corre para a lateral e conversa com uma professora imaginável dizendo que a mãe dela nunca fora na escola nos dias de festas e que ela sempre ensaiava um poema para dizer a mãe, mas não conseguia, pois a emoção a dominava. Neste momento, volta ao centro segurando à mão da professora e diz o poema inteiro sem derramar uma lágrima.
Senhoras e senhores já começou o espetáculo? É a Rose ou o personagem? Fiquei confusa, mas o interessante é que eu sabia exatamente quando era a Rose e quando era o personagem. Nesse momento a arte saiu da caixa preta e foi trazida para a vida. Talvez não exista um nome para esse fazer, mas em alguns momentos lembrou-me os happenings que para o compositor John Cage são “eventos teatrais espontâneos sem trama” e para o poeta e artista plástico Jean Jacques Lebel “é arte plástica, mas sua natureza, não é exclusivamente pictórica, é também cinematográfica, poética, teatral, alucinatória, social-dramática, musical, política, erótica e psicoquímica. Não se dirige unicamente aos olhos do observador, mas a todos os seus sentidos”.
Envolveu além do aspecto de imprevisibilidade, envolveu a participação direta ou indireta dos espectadores presentes. As improvisações nos conduziam as cenas ritmadas pelas ideias do acaso e espontaneidade da atuante em contextos diversos. Acredito ser teatro porque acontece no tempo real, mas recusa algumas convenções artísticas, tipo um texto pronto para ser decorado ou um palco para ser encenado, é aqui, ali ou em qualquer lugar. A apresentação beirou as fronteiras entre arte e vida. Rechaçou as críticas e o fazer teatral somente dentro da caixa preta.
Ouça meu filho! O que é arte? Ela nos diz em cena, a relação da vida dela com a arte, é isso!!! Rompeu barreiras entre a arte e não arte. Seria experimentar a arte como sua razão de ser? Sua razão de ser em cena é o seu dizer-teatral que nos devora inteiro e devolve-nos desvelado de si mesmos.
Vivi este momento como um buscar de mistérios, uma dádiva ofertada. O café que pensei estar na xícara em cima da mesa, foi uma oferenda, mas ele nunca existiu na cena, porém ela me presenteou com este café, senti seu aroma e quentura. Ei, não havia café algum. Seria ela a Matinta Pereira? Ela vem amanhã buscar o café na minha porta? Então vou ter que retribuir o café? Esse café na verdade é a magia do dizer-teatral que a atuante nos dá, mas não nos dá de graça. Tem um o forte interesse de receber o acalanto.
Por que associei à Matinta Pereira? Vi e senti o processo vivido como uma dádiva. Reza a lenda, que devemos retribuir o presente recebido, caso contrário podemos ser amaldiçoados, pois o que a atuante nos deu segundo as variadas lendas da Matinta, possui um vínculo de alma, é algo espiritual. Por isso a obrigação de receber é essencial para o conceito de dádiva de Marcel Mauss (2003), não aceitar é recusar aquele que ofertou, negando a comunhão consigo e com outros, pois é essa comunhão é que nos une. É tomar e dar o café sem ele está ali.


Matinta Perera! Fióóóó! Fióóóó!
Prof.ª Msc. Silvia Luz
02.11.2014

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O fungar do nariz

Critica ao Espetáculo do Grupo de Teatro Universitário (GTU) "Zeca de uma cesta só", por Tainá Lima, graduanda em Teatro / UFPA.

O teatro por si só já é um ato político, mas quando o teatro não usa a dramaturgia para justificar o ato, mas faz do ato a própria dramaturgia, temos algo que ouso chamar de essência.
A experiência que vivi como espectadora do espetáculo "Zeca de uma cesta só" foi familiar e ao mesmo tempo estranha. Familiar porque recentemente vivenciei na condição de atriz a montagem cênica "Zé" realizada pelo GITA, que aconteceu no mesmo Teatro Claudio Barradas. Nomes até parecidos, Zé um homem miserável e manipulado por seus superiores luta pra dar o melhor a sua família, mas está doente e alucinado; Zeca, uma mulher miserável, manipulada pelo sistema que diz que pobre é trabalhador e rico é doutor, ela é mais uma trabalhadora da base mais populosa da pirâmide social. Conheço o contexto não somente porque vivenciei uma dramaturgia parecida, mas porque minha mãe e eu vivenciamos na pele uma situação conhecida por Zé e Zeca: o desemprego, a dor da fome e do medo. O outro lado foi estranho e desafiador porque Zeca foi um espetáculo fácil de decifrar, o difícil foi quando o espetáculo me convidou a decifrar o mundo. Algo que é mais complexo do que se imagina. 
No começo o desabafo de uma mulher no palco seguido de uma população que grita, abafando assim o protesto solitário dessa mulher. Depois dois extremos: a casa humilde em tijolo cru de Zeca e a casa luxuosa de seu patrão. Nessa cena o espectador já sabe do que se trata o espetáculo e os textos expostos em slides confirmam e intensificam uma realidade que, no percurso do dia a dia, esquecemos. Mas o teatro, no seu âmbito ficcional e extracotidiano, ao mesmo tempo que nos aproxima da precária realidade do dia a dia, nos afasta dela. 
Zeca, um espetáculo construído pelo GTU por mais que pareça, não chega a ser um espetáculo predominantemente brechtiano, para se fazer um espetáculo assim exige mais tempo de pratica e pesquisa, contudo, Zeca é um espetáculo que utiliza magnificamente bem os recursos brechtianos, o mais presente é sem duvida o distanciamento.
Quando começo a me envolver no ritmo do tecnobrega, um tiro é disparado e me distancio, quando começo a me envolver na trama de conflitos vividos por Zeca no seu dia a dia ou na sequência repetida de seu ultimo dia de vida, ou nos dias de sua lembrança, uma dupla de atores vestidos de preto assumem a fala, um texto é projetado em slide, enfim, alguma coisa interrompe - acontece - e me distancia, assim, não consigo mergulhar no estado ficcional que a cena me conduz, logo estranho, logo percebo que estou no delicado e sutil espaço do teatro que me leva a uma dualidade de realidades: a realidade da personagem narrada teatralmente e a realidade narrada por todos nós fora da ficção do teatro, em nossas vidas. 
Augusto Boal me lembra que é possível fazer teatro político com não atores, o GTU me lembra que é possível fazer bom teatro com jovens diretores, encenadores e atores. Esses jovens começaram seu fazer teatral da melhor forma. Visivelmente mostraram potencial cênico, entendimento político que a história aborda e propriedade do texto. Algumas falas não entendi, questões técnicas que podem ser ajustadas, porém todas as cenas do espetáculo estavam tão bem preenchidas dramaturgicamente que até quando eu não entendia uma fala ou perdia uma ação, eu entendia o contexto da cena e para além do entendimento racional, eu sentia. Os atores realmente vivos em cena me fizeram perceber a organicidade de um ato político, algo que eu não via há muito tempo.
 O espectador ver as sensações do ator quando bem colocadas em cena, em Zeca não só vi como percebi sensivelmente a vontade que todos os atores tinham de está em cena, a alegria, o amor, a força e até revolta diante do sofrimento dos personagens. 
Durante meus anos estudando teatro na teoria e pratica me deparei com palavras difíceis, com cenas quase indecifráveis, com grandes produções que pouco me diziam e pequenas produções que tudo falavam ao meu coração. Zeca é um espetáculo simples até na visualidade, mas esse simples tão bem construído vale pelo singelo motivo de que me aproxima não do realismo, mas do que real. O alimento não perecível na caixa de entrada do teatro é familiar, mas os alimentos no caixão são estranhos. Zeca alcançou algo que muitos teatros tentam: do recurso pobre bem utilizado chegar ao poeticamente rico. 
Essas oscilações, sensações, imagens, textos, reviravoltas, distanciamentos nos levam no final para algo que digo em um dos meus poemas "dois segundos a vida"; em Zeca "duas escolhas, a morte". No final, quando o publico que escolheu o segundo final pensa que Zeca continuará viva, ela vai presa e por descaso dos "superiores" ela morre arrastada pelo carro da policia. O vídeo da mulher que morreu ao ser arrastada pelo carro da policia é exibido, uma cena não ficcional que aconteceu na historia do nosso país talvez já esquecida por vários, mas relembrada por Zeca que de um jeito ou de outro morre. Talvez essa leitura de mensagem seja pessimista, mas no fundo não é. Zeca é aquela mãe que da um tapa na cara do filho e diz: "Acorda, tenha ordem meu filho, e progrida na vida. Ainda há esperança".
 O espetáculo inteiro leva o espectador do riso estérico ao choro tímido recolhido na cadeira acompanhado de um fungar de nariz. Valeu a pena rir e chorar.
Tainá Lima
30.10.2014

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Na cesta de Zeca: considerações por um Teatro de reflexão crítica.

Por Edson Fernando
Em meio à escassez de práticas artísticas diretamente ligadas ao postulado de um teatro político militante em nossa cidade, toda experimentação que se volte a este propósito é bem vinda e merece atenção, principalmente no tocante aos meios pelos quais se organizam os elementos da encenação, pois parece ser este o lugar que guarda o maior desafio para os encenadores contemporâneos, na medida em que são provocados a pensar sua conjuntura histórica tomando como parâmetros, princípios estéticos e poéticos de encenadores de um passado recente. A maior referencia neste aspecto ainda é, sem dúvida, o pensamento e prática do alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956). É o que se passa com Zeca de uma cesta só, montagem do Grupo de Teatro Universitário dirigida por Léo Ferreira. A filiação aos princípios de Brecht é assumida explicitamente durante a apresentação da montagem e, por este motivo, é que me permitirei tecer considerações a partir deste lugar, isto é, a partir dos elementos norteadores e fundadores do que se convencionou chamar de teatro épico brechtiano. Espero não incorrer num desenvolvimento de idéias herméticas e acessíveis somente aos pesquisadores-artistas de teatro; mas este é o risco que me cabe e que nesta crítica, aceito de bom grado.  
Começo apontando dois gestos importantes que se destacam, curiosa e respectivamente, no início e final da montagem: a leitura de uma carta analítica e explicativa sobre a própria montagem e o caixão de Zeca. O primeiro gesto nos indica que os elementos poéticos da encenação se encontram em tensão aberta com os princípios que a fundamentam. O que se passa é o seguinte: enquanto um atuante se dirige diretamente ao público para proceder à leitura de uma carta explicitando os motivos que deram origem a montagem teatral e seus propósitos enquanto reflexão crítica de nossa realidade, os demais atuantes invadem a cena em coro interrompendo, ou melhor, atrapalhando esta ação.
É importante observar as instâncias de contrastes criados: em primeiro lugar entre a condição do que lê a carta – isto é, aquele se assume como ator que explica e reflete sobre a montagem, completamente desprovido de caracterização e relação direta com a fábula que será apresentada – com a do coro que atrapalha a ação – isto é, os atuantes na sua condição de representação dos papeis da fábula. Em outras palavras, é o contraste entre o encenador na sua condição mais assumidamente de pesquisador-artista e as criaturas em sua condição absolutamente poética – as personagens. Neste embate, vence o coro que num murmúrio crescente sufoca a voz do pesquisador-artista. Seria um indicativo de que a montagem daria primazia aos elementos poéticos em detrimento dos princípios formalistas estabelecidos no teatro épico de Brecht. Infelizmente não é o que se passa durante a apresentação da montagem que, repetidas vezes, insiste em nos defrontar com a formalização dos recursos, no intento também explicito, de nos provocar uma reflexão crítica da obra – exemplo disto são as projeções de textos absolutamente formais e acadêmicos que se interpolam as cenas a pretexto de nos fazer refletir sobre a situação de Zeca. É fundamentalmente este contraste que considero como tensão aberta entre os elementos da encenação e os princípios que a fundamentam.
Outro contraste interessante de se observar, ainda neste primeiro gesto da montagem, se dá entre o discurso do que lê a carta e o discurso do coro. Novamente o embate entre o discurso formal e categoricamente analítico e o discurso poético. Nossa atenção é dividida entre esses dois pólos e somos solicitados a escolher qual deles perseguir, dada a impossibilidade de acompanhar os dois ao mesmo tempo. Sob este aspecto, os primeiros elementos do escracho na atuação dos papéis do coro nos saltam os olhos e acabam por monopolizar nossa atenção, em virtude do apelo cômico que provocam. Mais uma vez a indicação, ou o desejo, de que a montagem tentaria equilibrar ou conduzir de modo poético nossa forma de reflexão crítica. Para analisar com maior rigor esta questão é necessário visitar os outros elementos da encenação á luz dos princípios brechtianos.
Primeiramente uma visita a fábula. Encontramos na montagem a história de Zeca, uma empregada doméstica, mãe solteira de três filhos, que mora no bairro do Guamá; no desenvolver da fábula disposta em estrutura épica, isto é, com cenas em saltos e independentes, descobrimos que ela veio do interior para a cidade para morar e trabalhar em uma casa de família como doméstica; sofre abuso sexual do seu patrão e é expulsa da casa. Sua mãe é evangélica e insiste para que a filha cuide da educação dos netos, principalmente da neta para que a história não se repita com ela. O filho mais velho foi morto quando tentava furtar o celular de uma policial.
Todos estes elementos e outros não citados negligenciam um aspecto fundamental de uma fábula épica brechtiana: o “distanciar” os acontecimentos apresentados. “Distanciar” numa abordagem épica brechtiana significar subverter a situação natural ou a ordem dos acontecimentos, furtando-lhe tudo que seja convencional para então provocar, por esta via, espanto e curiosidade. 
Não é o que vemos ao longo da fábula, pois toda a situação retratada nos é muito familiar, isto é, muito próxima da nossa realidade: o modo de falar popularesco atribuído a periferia da cidade com todas as suas gírias, palavrões e pouca importância a concordância verbal e nominal; os elementos estéticos estereotipados de uma festa de aparelhagem – o DJ e as ledes; as personagens típicas e socialmente estereotipadas como o homossexual ultra-afetado com seu linguajar peculiar, os policiais linha dura, a evangélica conservadora e a mocinha sonhadora. Todos estes papeis povoam o universo que conhecemos muito bem, que estamos familiarizados e que sem nenhum tipo de tratamento pelo estranhamento dificilmente nos provocam reflexão crítica, e sim reforçam os conceitos e/ou pré-conceitos já estabelecidos na fábula e para além dela.  O universo em que se move Zeca, a protagonista da fábula, deste modo, não apresenta nenhum elemento que nos faça estranhar a sua situação.
Esta proximidade e familiaridade com a realidade retratada debilitam nossa capacidade de reflexão crítica, pois somos agenciados pelo processo de identificação a reconhecer Zeca como vítima da sua própria situação social. Não causa surpresa, neste sentido, que no final da montagem quando o público é solicitado a opinar sobre o destino da protagonista ele se manifeste por dar outra chance à ela, visto que Zeca contextualizada como vítima não tem culpa das adversidades e tragédias de sua vida; não só não tem culpa como não conseguirá mudar seu destino por sua própria vontade. Zeca como fruto de uma realidade determinista não tem como escapar do destino cruel e somente por força de uma intervenção da sorte poderá ter um futuro mais promissor. O público decide, portanto, dar-lhe esta nova chance, agido assim como um demiurgo do seu destino, motivado pelos elementos emotivos e de identificação com a situação da protagonista.
 Embora a fábula em si não ofereça o “distanciar” necessário para provocar nossa reflexão crítica, alguns elementos da encenação são estrategicamente colocados com este propósito. Passo a analisá-los em seguida.
Primeiramente temos duas narradoras-debatedoras. Elas se encontram no centro do palco trajando roupas neutras e se dirigem diretamente ao publico, por diversas vezes, para comentar as cenas, pontuando categoricamente reflexões críticas sobre o que assistimos. Suas intervenções reforçam a estrutura épica da montagem; no entanto, deve-se observar com cuidado que o teor de seus comentários vai estabelecendo uma sutil atmosfera dramática que reforça a situação adversa de Zeca.   
Em segundo lugar o uso das projeções dos textos no fundo do cenário da casa de Zeca. Recurso bastante utilizado por Brecht, a literalização da cena permite abrir um canal direto com o publico que é solicitado a acompanhar as idéias dispostas em cartazes ou tabuletas. No caso da montagem o uso é de projeções ao fundo do cenário. Duas questões para refletirmos no uso deste elemento: os textos projetados beiram o didatismo acadêmico, preocupando-se em apresentar ao público o propósito da montagem, o pensamento do autor que fundamenta este propósito – Brecht – e o misticismo envolto no teatro burguês que pretendem subverter. Não utilizam o recurso como modo de comentar a cena, o que poderia nos possibilitar o distanciar dos acontecimentos já anteriormente apontados como familiares. E aqui surge a segunda questão: as projeções ocorrem no intervalo entre as cenas e não durante as cenas, o que poderia potencializar o mesmo efeito já mencionado, isto é, como comentário reflexivo da cena.
Isto remete a outro elemento curiosamente utilizado na encenação: a repetição, por três vezes, da mesma cena. É muito interessante observar como este processo de repetir a mesma cena proporciona – fundamentalmente a atuante que desempenha a protagonista da fábula – o historicizar os acontecimentos apresentados. Assim, acompanhamos a cena a primeira vez com um olhar que nos faz perseguir naturalmente o desenlace da cena; mas na segunda e, principalmente, na terceira repetição somos provocados a encontrar elementos para além da fábula, posto que já sabemos exatamente o que cada personagem irá dizer ou fazer. No entanto, na repetição das cenas nada de novo nos é oferecido; exatamente aqui as projeções dos textos poderiam abrir esta fissura proposital na fábula, com o intuito de comentá-la ou problematizá-la para então, obter o efeito de distanciamento e estranhamento da situação apresentada. Isso não ocorre.
Por fim, cumpri-me abordar o seguindo gesto importante que identifiquei na montagem, isto é, o caixão de Zeca que surge no final da montagem. O gesto sem dúvida, mais significativo e perturbador que esta montagem apresenta. A partir dele instala-se uma problematização que ultrapassa a fábula, a encenação e a caixa preta do teatro. O gesto é simples e até previsível na cena final da montagem, mas potente e inquietante: os atuantes entram carregando um caixão coberto com a bandeira do Brasil; as atuantes que representam Zeca – na idade adulta e na adolescência – aproximam-se dele, abrem-no e nos permitem ver que ele contém os alimentos da cesta básica. Se compreendermos este gesto somente na dimensão da fábula recairemos na apreensão do seu significado mais previsível e superficial, ou seja, de que os projetos assistencialistas que distribuem cesta básica – que perduram até hoje – escravizam e promovem a morte simbólica – dignidade humana – daqueles que ainda dependem deste tipo de projeto para sobreviver.
Este gesto, no entanto, colocado para além da dimensão da fábula nos confronta com nossa própria atitude de levar um quilo de alimento como pagamento para assistir a montagem. E neste sentido, a produção da montagem já apresenta este elemento problematizador para o publico quando determina que a entrada se estabeleça pelo pagamento do ingresso e mais um quilo de alimento não perecível. Ora, colaboramos e aceitamos esta prática sem nenhum tipo de questionamento; neste sentido, a reflexão crítica deste tipo de prática deveria começar antes mesmo de adentrar mos as portas do teatro; mas isso não se estabelece e, portanto, não podemos deixar de nos reconhecermos como os assassinos de uma Zeca que se encontra para além da fábula, ou melhor, de uma Zeca que se encontra em nosso próprio meio.
Desnecessário, mais inevitável dizer, que a alegoria da cesta básica estabelece vinculo direto com os tão propalados e defendidos programas de assistência social do governo federal – dentre eles o seu carro chefe, o Bolsa Família. O vinculo é inevitável, pois a lógica e a natureza deste tipo de programa é a mesma: assistencialismo paternalista do estado brasileiro.  Por esta alegoria a montagem nos provoca a estender a reflexão crítica sobre a distribuição de cesta básica até o programa Bolsa Família: o que há de nefasto neste tipo de programa? Por que soa reacionário qualquer crítica que se volte contra este tipo de programa governamental? O que nos impede de reconhecer, neste tipo de programa, a prática de um extermínio em massa da dignidade humana de milhões de brasileiros?
Isso é absolutamente inquietante. Por isso reconheço neste gesto uma vinculação genuinamente brechtiana, menos pelo procedimento formal e sim muito mais pela questão provocativa que instaura para além de todos os recursos da encenação.   
Edson Fernando

28.10.2014

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Nem mais nem menos Zé(s)

Espetáculo: Zé.
Credenciais da autora da crítica: Silvia Luz, professora e atuante. 

Atmosfera sombria, um retângulo era o palco, ou será arena, masmorra, manicômio?... Enfim, os atuantes todos de preto com as caras pálidas contrastando com a penumbra da cena. Entro ou não entro no abismo do mundo. O retângulo tinha duas aberturas para a entrada dos espectadores, o espaço de duas cadeiras, por lá adentrei covardemente. Tudo escuro fecha-se o retângulo, passos com sapatos de diversos saltos são ouvidos, eram homens, mulheres, todos em vão caminhando; faziam-me acreditar que eu estava correndo, mas para onde? De quem?
A angústia do momento passou quando ouvi a voz do primeiro atuante, houve uma quebra de sensações. No início tiveram textos cuspidos de forma mecânica e fria, simplesmente o texto, mas de repente o “fogo ergueu-se da terra fria como o fogo do fogão” e a atmosfera esquentou e todos pareciam queimar insanamente, minha cabeça parecia o badalo do sino na meia noite da missa do galo. Ouvia vozes nos quatro cantos e um silêncio gritante no centro do palco, eis que era o Zé, um homúnculo que mal se mexia, mas que tinha os olhos vidrados e opacos, talvez sem vida.
Eram cinco atuantes um em cada ponta e um no meio, mas algo sentido dentro de mim os unia profundamente, pareciam unidos por um turbilhão de sensações, a das mais infames a mais sublimes, quando Maria mesmo em seu meretrício mental, cinicamente tinha gestos de ternura e emoção com o tal Zé, pois por dentro Maria tinha asco desse Zé, mas por fora esse ódio transformou-se cinicamente em falsos gestos de afeto, acredito que a sustentação dessa atuação deu-se por meio da oposição de energias e a equivalência das ações, tudo era uníssono neles.
Os sapatos usados pelos atuantes revelaram a hierarquia dos tipos sociais, botas para o Capitão e Tamboreiro, sapato de salto alto para Maria, Margarete tinha uma botinha e o Zé um sapato de pano, de aspecto fuleiro e desgastado. Todos faziam barulho quando andavam menos o Zé, o único são da história, o maioral do pedaço, mas invisível aos olhos, pois nossos valores estão nos pés, é isso!
Zé estava sendo vendido em praça pública e nós espectadores o julgávamos, a cada diálogo dos atuantes nossos preços variavam, a cada lance um recuo na cadeira, um olhar para dentro de si, para cima, para o lado e nunca à nossa frente, com vergonha de ver a realidade. Somos hipócritas como a masturbação do Capitão, ele está gozando e rindo da nossa cara com o dedo no cu e ainda nos dá para cheirar, ao final ficamos sem graça, pois isso é imoral, mas “fuder” com os outros é moral. Hoje o “certo” é sempre ser superior aos outros custe o que custar.
Que ironia! O autômato Zé nos joga na cara o que somos, insipientes, desumanos, egocêntricos, traidores, inóspitos.... Tudo que eu aponto no outro, na verdade é o que desejamos fazer ou fazemos.
Senti-me atuante nesta apresentação, apesar de estar como espectadora. A precisão do momento me puxava para a cena. O vigor presente na atuação dos atuantes era tão intensa que me fez suar e sentir a energia destes cinco corpos. Senti-me provocada e inquieta na cena do assassinato de Maria, no início da cena a atuante que fazia a Maria sufocou-me com sua naturalidade, tudo conectado, estado psicofísico. A atuante que fazia o Zé delimitou a cena em início meio e fim, por meios das ações e principalmente pela intenção das mesmas, o clímax foi sustentado por esta precisão. Confesso que fiquei chocada e atordoada com a naturalidade dos atuantes em cena. Bravo! Bravíssimo!  Sigamos em frente com o treinamento. Acordaram o Leão que existe dentro de vocês, agora é preciso domá-lo.
Prof.ªMsc. Silvia Luz
12.10.2014

Uma Poética do mijo.

Espetáculo: Zé.

Credenciais do autor da crítica: Victor Peixe - Ator

Quem é tolo o suficiente para dar ouvido a soluços?

Quem é este qualquer, a quem chamam de , que me recordo em fragmentos, em ausências?
Que após dias, semanas, que não está mais na esquina, sob uma marquise. Para onde terá ido? Como a permanência da sua falta me causa tanto incômodo?

E estes, que contam sua tola história, tão despidos em sua apaixonante entrega, a mercê do meu escracho, conhecem sua condição: meros títeres nas mãos de um manipulador obscuro? Também me causam desconforto qual uma multidão, na cadência de seus passos hipnóticos que de tão profundos e sincopados, em seus corações só pode bater algum poderoso relógio, capaz de abafar a rouquidão do lamento humano. Zé, teu choro jaz abafado por essa multidão de passos.

Compreendo ... de cada gesto que urra, ganho retalhos que em bricolage recompõe tua vida, a vida de um indigente; que definha, sucumbe em sua degradação moral, gesto sobre gesto.

Tudo em ti é incômodo Zé. Neste espaço que não permite a fuga, por uma hora não posso virar o rosto ou atravessar a rua ignorando tua existência. Uma hora é tudo que te permito . Por uma hora tenho a puta e o pervertido por companhia, por uma hora caminharei ao teu lado, atravessando esse cotidiano funesto e  degradante.

Até que te tornes uma lembrança, um mito, eco de um mundo desgraçado, até que perguntem “Matou por loucura, paixão ou insensatez?”.

Para onde vais agora ? Ora, te persigo por essas ruelas, onde a vida é algo mais que alguns trocados, onde a vida ganha o rubor das faces de qualquer vagabundo, tão úmida e apaixonante quanto a febre. Na crueza dessa imundície, impossível te ignorar. Afinal, que nome dar a isso que despedaça minha humanidade, transformando homens em bestas?

Por que me persegues ? Por que não te calas e aceita tua condição subalterna e medíocre? Entende, por fim, que apenas aqui te darei atenção. Na esquina próxima, ao me deparar com as verdades de um outro ébrio, não lhe darei bom dia nem palavra, não lhe darei moeda, antes cuspa no seu caminho!

Cala-te, ! Este teu lamento insone, perante estes poucos que ora escutam de nada te é útil, já que ao repousarem suas almas sob algum travesseiro, hão de te esquecer, eu asseguro! Teu choro engolido, tuas palavras balbuciadas, são ininteligíveis. É absurdo que ainda respires.

De olhos muito abertos e vivos, e em profundo torpor me obrigas (ou devo te chamar Maria ou, ainda, Capitão?) a enfrentar meu reflexo e contemplar quão asqueroso o ser humano é?! Não , não quero aceitar que vivas dentro de mim!

Tua sina é ser purgado, ridicularizado, tido por louco, engaiolado, tomado por peça a ser metodicamente contemplada na segurança de um teatro, sob o olhar vigilante das câmeras, pois apenas do Teatro és merecedor!
Uma vez esgotados todos os valores do mundo, te faço meus sinceros votos: que te realizes numa caixa preta, sem nunca tomar o pátio de nossas vidas!
12.10.2014
Victor

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Barrela – uma leitura varisteira de Plinio Marcos

“Que puta zona é essa?! Já não se pode dormir aqui não?!” Disse Bereco ao ser acordado pelo bando que zoava com Portuga. Barrela traz toda violência ocorrida dentro de uma cela de penitenciaria. Mostrando a realidade existente nos sistemas penitenciários do Brasil. O horror, a dor, a desumanidade, revolta e pesadelo narram uma noite entre cinco atores presidiários que mostram a dramaturgia de Plinio Marcos com um corpo expressivo no contexto marginalizado. O espaço com panadas pretas e uma luz baixa, coloca o expectador a sentar no chão como se fosse um dos detentos daquele buraco fudido de merda. Em cena, um guarda rodeia os cincos detentos balançando um molho de chave e delimitando a relação artista-espectador. Somente um espectador rebelde se desvia para entrar em cena com Bereco, Fumaça, Portuga, Tirica e o Louco.
A peça que foi censurada em 1958, ganha montagem pelo grupo Os Varisteiros (ver mais sobre o grupo em http://www.osvaristeiros.com/#!sobreogrupo/c1ds2) que encerraram a segunda temporada com maior destaque na mídia local. Barrela coloca o publico como testemunha da violência penitenciaria. Cenas de estrupo com um garoto que passa apenas uma noite dentro da cela e assassinato são apresentadas com desespero e agonia, onde o espectador se junta ao bando de presos num espaço enfestado de suor, respirando e sentido a quentura daquele ambiente. Quase como uma tortura, o olhar sensível é pouco notado na peça. Mas pode ser visto na fraqueza de Bereco, que por pressão dos outros da cela, quebra a regra do comando puxando um fumo e deixando de evitar o estupro do garoto.
A peça dirigida por Maycon Douglas tem seus autos e baixos, e a linha que narra as cenas,vai dando volume ao espetáculo a cada ação. Quando somos colocados a imaginar o que vai acontecer, a tensão se diminui deixando a expectativa pra depois. Assistimos esperando algo incrível aparecer, esperando o momento corta o pensamento e irmos de encontro com a peça, tal qual pensamento de Plínio:
Escrevi em forma de diálogo, em forma de espetáculo de teatro, que era o que eu mais conhecia, mas não me preocupei com os erros de português, nem com as palavras. Imaginei o que se passara no xadrez antes, durante e depois de o garoto entrar, coisas que eu conhecia bem de tanto escutar histórias na boca da malandragem. E dei o nome de Barrela, que é a borra que sobra do sabão de cinzas e que, na época, era a gíria que se usava para curra. (ver site oficial com obra de Plínio Marcos  http://www.pliniomarcos.com/dados/barrela.htm)

Estamos à mercê da violência, cumplices das mortes estampadas nas carpas de jornais, integrados a um contexto de informação digital impetuoso. Mas o que leva o publico a se impressionar com a apresentação? A peça montada pelo grupo Os Varisteiros, dá forma a linguagem estúpida Pliniana. Atuada vigorosamente com sangue no olho e mostrando situações violentas mais do que atuais.
Barrela é a quarta montagem do grupo, e foi sentida na pele a exaustão do corpo. A construção da peça foi realizada ao longo de oito meses. Ódio, porrada, mudança de estado de corpo, foram dando tensão a montagem que pede trabalho e construção coletiva. Proposta ousada em encarar a dramaturgia de Plinio Marcos, que busca na literatura marginal um diálogo forte. Uma boa releitura da obra pelos Varisteiros que avançam no que o autor escreveu, sobre um corpo dilatado além das palavras, como fala Roland Barthes:
Ora, tenho a convicção de que uma teoria da leitura (dessa leitura que sempre foi aparente pobre da criação literária) é absolutamente tributária de uma teoria da escrita: ler é reencontrar – no nível do corpo, e não no da consciência – como aquilo foi escrito: é colocar-se na produção, não no produto; pode-se encetar esse movimento de consciência, quer de maneira bastante clássica, revivendo com prazer a poética da obra, quer de maneira mais moderna, retirando de si toda espécie de censura e deixando ir o texto em todos os seus transbordamentos semânticos e simbólicos. (BARTHES, 2004)

05/10/2014
Bernard Freire