segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Confluências de UM lugar entre

Crítica ao espetáculo UM, por Edson Fernando

Quando se está “entre” nos é permitido gozar da suspensão das categorias absolutas, pois no estado intermediário as coisas ou seres adquiriam uma potência ambivalente que retroalimentam sua condição mais elementar. Na adolescência, por exemplo, deixamos a infância pra trás sem, no entanto, termos alcançado a idade adulta e este estado intermediário proporciona a situação paradoxal de um ser – o adolescente – que deixou de ser – criança – mas ainda não se tornou o ser – adulto. Ele, portanto, encontra-se em estado de suspensão, pois deixou de ser, sem ainda ter se tornado. A adolescência, neste sentido, pode ser considerada uma categoria relativa a um ser em estado de transição.
Se voltarmos esta pequena reflexão para problematizar nossa condição humana em suas múltiplas dimensões – ética, política, econômica, filosófica, sociológica, etc. – poderemos constatar que estar no lugar “entre” de alguma forma nos permite o ultrapassamento de nossa dimensão mais subjetiva, proporcionando-nos a revisão, abstração ou mesmo a subversão de todos os nossos valores instituídos. O mesmo se aplica as práticas artísticas que se colocam como operacionalizadoras destes espaços “entre”, isto é, as práticas que instauram no palco a dimensão e realização de um rito. É o que ocorre com a pesquisa mais recente da Companhia Moderno de Dança no espetáculo UM. É a partir do lugar “entre” que me permitirei tecer algumas considerações à pesquisa que se encontra em andamento.
O primeiro elemento relevante a se considerar encontra-se exatamente no fato da Companhia compartilhar, primeiramente, a pesquisa em andamento por meio de sessões de fruição da obra aberta ao publico para, então, de modo colaborativo posteriormente afinar o espetáculo. Este encaminhamento mostra a maturidade do grupo envolvido na pesquisa e sua responsabilidade e preocupação em encontrar novos meios de compartilhamento dos seus conhecimentos e de sua arte, meios que se estabeleçam para além do entendimento da obra como produto. O processo criativo é importante, tão importante ou até mais importante que a visão mercadológica estabelecida que concebe o artista como mais um trabalhador no meio social. Não causa surpresa, neste sentido, que a pesquisa tenha sido contemplada com o PRÊMIO FUNARTE PETROBRÁS DE DANÇA KLAUSS VIANNA 2013; pelo contrário, mostra o reconhecimento de um projeto maduro que pensa e estabelece sua arte em consonância com as demandas atuais da sociedade.
Assim, as considerações que apresento, a seguir, configuram-se como tentativas de colaboração com o corpo de uma obra que, embora se encontre em andamento, já se mostra plenamente vigorosa e com seu arcabouço processual muito bem estabelecido, ou seja, o lugar do “entre”, ou para ser mais exato, utilizando a nomenclatura de Victor Turner, a esfera da experiência liminóide – espécie de experiência contemporânea que proporciona similaridade ao tempo e espaço instaurados pela liminaridade dos ritos antigos. É por esta lente que discorro agora.
A imponência da área de atuação estabelecida pela arena circular, iluminada por candeeiros de velas e chão de terra – muita terra – imediatamente nos defronta com nossa pequenez diante dos espaços sagrados ou sacralizados. A sacralidade do espaço é completada pela sonoplastia executava ao vivo e, fundamentalmente, pelos atuantes a ritualizar suas ações iniciais. O choque com esta imagem inicial que a Companhia nos oferece é brutal e, talvez por isso, o processo de reconhecimento dos elementos destoantes se imponha também tão imediatamente aos nossos olhos: as cadeiras de plástico brancas, reservadas aos espectadores, rompem a estética de ancestralidade visual formando um anel frio em volta da área de atuação, anel visual apartado de todas as ações intensas que serão vivenciadas pelos atuantes no solo arenoso. E se por um lado temos terra, fogo, água e ar intensamente trabalhados no espaço sacralizado da vivencia do rito, por outro é reservado aos espectadores o plástico das cadeiras e o chão em carpete formando um pequeno fosso que separa o espectador do alcance do solo viripotente da vivência. Desse modo, o contato direto com a terra, capital na relação dos atuantes e sua dimensão gestual ancestral durante toda a vivência, revela-se de modo antagônico com o público por sua relação asséptica com o espectador.
Esta arena, portanto, constrói seu próprio espaço liminóide reservado exclusivamente aos seus iniciados – os atuantes. Assim, dentro dela – arena como espaço liminóide – tudo se passa de modo não rotineiro, numa intensificação da experiência do tempo presente que se opõe veementemente ao comportamento dispersivo e difuso do cotidiano; cada gesto, movimento, canto, sonoridade e ação são realizadas – por boa parte dos atuantes – de modo a ritualizar o espaço. É impressionante como experiências dessa ordem conseguem acionar um comportamento semelhante aos que simplesmente assistem: o público mesmo apartado do espaço e da ação central manifesta respeito a sacralização do lugar e procura manter-se em silencio respeitoso e com o mínimo de gesticulação aleatória possível.
Um elemento em particular, no entanto, nos dá pistas de que o espaço liminóide poderia ou poderá ser estendido ao alcance do público: os três alguidares com banho de ervas. Dois deles se encontram estrategicamente colocados em cada portal de entrada que nos levará ao encontro da arena; mas nenhum tipo de preparação nos é sugerida e nenhum tipo de orientação nos é ofertada pela equipe ou mesmo pelos atuantes. Ficamos a mercê de nossa curiosidade na relação com este elemento tão rico pela simbologia que porta e que é explorada, posteriormente, durante a vivência, por ocasião do banho de purificação dos atuantes. 
Importante frisar que uso o termo “vivência” e não “apresentação” ou “representação” para me referir ao ato proposto pelo espetáculo, posto que aquelas palavras não dão conta da potência operada na esfera do rito e, consequentemente, pelo desenvolvido neste espetáculo. Na experiência linimoíde se “vive intensamente” diferentemente de se “representar intensamente”. Trata-se de uma entrega intensificada por uma experiência de restauração da parte – o homem – com o todo – o universo – intimamente ligado à ideia de uma dimensão harmônica e existencial perdida. Isso é possível de notar em boa parte dos atuantes quando vemos seus corpos num processo de ritualizar o movimento, diferentemente de alguns outros que permanecem na esfera da execução coreográfica dos movimentos. 
Ora, mas poderíamos objetar que por se tratar de um espetáculo de Dança, realizado por uma Companhia de Dança, nada mais natural do que assistirmos aos movimentos tecnicamente coreografados, ou seja, nada mais natural do que os atuantes dançarem suas coreografias. A questão que proponho, então, para refutar ou não tal objeção é a seguinte: UM pretende ser meramente um espetáculo de dança convencional? O que e como se pretende dançar em UM? O que interessa na construção da pesquisa do movimento em UM? O que se deseja ao se aproximar e se apropriar da esfera do rito? É possível tal aproximação sem que haja mutuas trocas entre as esferas da dança e do rito? É possível passar impune pela esfera do rito? Toda dança é rito e vice e versa? Quando UM deixou de ser dança para ocupar o lugar “entre” Dança e Rito?
Podemos ensaiar parte das respostas observando o que ocorre no fragmento final da vivência: após o ato de purificação que envolve canto e o banhar de todos os atuantes, os mesmo despem parte de sua indumentária e se dirigem solenemente para fora da arena, longe da vista do publico. Quando retornam, já desprovidos do restante das indumentárias do rito, o estado que se apodera de todos é de ordem completamente diferente do anterior: todos agora circulam pela arena em movimentação circular e rítmica acelerada, grunhindo sons em estado de êxtase delirante executando movimentos em sincronia notoriamente coreografada. A transformação é tão radical na comparação com tudo vivenciado e visto anteriormente que ouso dizer que este retorno a arena não somente não se coaduna com a proposta desenvolvida até então, como também provoca uma mácula no próprio percurso processual da pesquisa. Fico então, com a impressão de que o trabalho já havia acabado antes deste último retorno dos atuantes.
Penso este trabalho como uma confluência “entre” Dança e Rito e, por esta perspectiva, procuro compreendê-lo como uma meta-tentativa ritual de restabelecimento da harmonia das partes – Dança, Teatro, Música, Performance, Visualidade – com o todo – o próprio Rito como síntese produtiva dessas artes. Se aproximar e se apropriar da esfera do rito significa, então, suplantar as barreiras categóricas que separam as supracitadas artes. E isso de alguma forma embaralha o jogo na recepção do espectador, pois ele – via de regra – segue o que está estabelecido convencionalmente, isto é, sua expectativa tenderá sempre para a recepção de um espetáculo de dança. O grande desafio, deste modo, é saber comunicar que o jogo no palco se estabelecerá por outros modos de percepção.
Para tanto, um elemento de crucial importância é o itinerário de entrada e saída do espaço ritualizado. Assim como já mencionei os alguidares no portal de entrada, que podem ser trabalhados como elementos para preparar os que irão adentrar o espaço sacralizado, também deve-se atentar para o modo como todos deverão ser conduzidos de volta  após o encerramento do ato.  
Há uma premissa de Aldo Natale Terrin que considero muito interessante e que tem me auxiliado a refletir sobre as práticas artísticas que confluem para o lugar do rito: x vale y no contexto ct. A premissa aparentemente sisuda expressa de modo simples que na esfera do rito alguma coisa (x) encontra-se no lugar de outra (y), mas que o jogo simbólico que permite esta permutação depende inteiramente do contexto que é criado. Segundo Terrin, trata-se de um jogo simbólico-místico entre uma ação (x = drómenon) e um mito (y = legómenon) que se estabelece num contexto que permite aos que vivenciam o rito reconhecer uma coisa (x) na outra (y). Entenda-se por contexto a determinação do tempo – duração da ação ritual: início e fim –, preparação do espaço, dos elementos, dos mestres de cerimônia e dos participantes. Sem a devida preparação de algum dos elementos que constituem o contexto do rito, o próprio ficará passível de uma recepção que comprometerá o jogo simbólico-místico proposto.
Observo que no caso das praticas artísticas que se estabelecem na confluência com os ritos, um contexto inadequado inevitavelmente remete a uma ação de representação de um rito ao invés de uma ação de vivencia do rito. E minha principal inquietação é que representar um rito leva o atuante ao falseamento do pólo mítico (y). Vejo então, atuantes executando ações (x) tentando me convencer de que estão desenvolvendo um mito (y) sem, no entanto, professar sua própria fé no que executa; e isso ainda ocorre com parte dos atuantes de UM, como já mencionei anteriormente. Em outras palavras, se cada atuante de UM não conseguir realizar seu próprio rito pessoal, o contexto da obra pode ser ver abalado.
O que me anima bastante ao tecer estas considerações é saber que a Companhia Moderno de Dança encontra-se com o processo criativo em andamento e maduramente aberta para pensar e re-pensar sua prática. Evidentemente que as considerações tecidas aqui, longe de encerrar alguma verdade, apenas prestam-se a tencionar a obra para o lugar de onde ela mesma se erigiu. E, neste sentido, é importante não esquecer que a obra se erigiu “entre” a dança e o rito, lugar privilegiado para a revisão, abstração ou mesmo a subversão de todos os valores instituídos. A longevidade que desejo a esta obra nos dará pistas para pensarmos, posteriormente, sobre a responsabilidade de nos reconhecermos como homens comprometidos a reinventar mais que simplesmente as linguagens artísticas, mas recriar nossa relação com o mundo.     
Edson Fernando

21.12.2014       

sábado, 20 de dezembro de 2014

Oração ao tempo: memórias de lembranças que não passam.

Espetáculo: Oração ao tempo.
Credenciais do autor da crítica: Dênis Bezerra é Ator, Diretor e Prof. Dr. da UFPA.

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo.

Caetano Veloso

O espetáculo Oração ao Tempo, do segundo ano do curso Técnico de Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPa, dirigido por Marton Maués e Jorge Torre, provocou-me a tecer algumas linhas sobre o trabalho. Tive a oportunidade de assistir duas vezes, na estreia e na sexta-feira, em ambos os momentos fui levado às minhas memórias, e à intensa relação que tenho com os velhos.
Dividido em quinze quadros, o espetáculo organiza-se como uma grande instalação na qual os espectadores podem interagir e trocar experiências com os personagens. Cada história perpassa pela temática da velhice, de um momento na vida do homem cujos sentimentos se misturam: a morte, a lembrança da juventude, a espera pela família, por um carinho, um afeto, uma mão para tocar peles marcadas pela história, sedentas de calor humano.
São diversos universos apresentados a nós espectadores, que precisamos nos deslocar pelos vários espaços e estabelecer conexões com as histórias de vida narradas. Cada detalhe é especial, o figurino, a cenografia, mas principalmente a interpretação dos atores em comunhão com o passado e presente juntos.
As palavras que aqui teço não são tomadas pelo olhar apurado de um exercício crítico, mas tocadas pelas sensações que senti ao presenciar esse digno trabalho, porque ele é para fruir, e foi isso que ocorreu comigo, a fruição, deletei-me com o espetáculo, cheguei ao estado de prazer relatado por Roland Barthes, em O prazer do texto:
O que eu aprecio, num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar. Nada a ver com a profunda rasgadura que o texto da fruição imprime a própria linguagem, e não a simples temporalidade de sua leitura.

Esse estado de fruição foi alcançado em vários momentos. No primeiro dia, pelo impacto de tudo; no segundo, pela sensação de apreciar o que no dia anterior não tinha sido possível, devido à emoção que me arrebatou, e por ter presenciado novamente essas histórias. Resolvi interagir mais, mergulhar com mais profundidade pelo café servido, pela rede que me lembra minha avó, pelos brinquedos, discos, vitrolas, mosquiteiro, álbuns, fotos que representam várias trajetórias de pessoas que não conheci, mas que se apresentaram pelo corpo dos atores ali em comunhão comigo.
Com relação à interpretação, quase todos me convenceram, cada detalhe, a transformação de um corpo jovem, pulsante, que aos poucos vão ganhando as marcas do tempo. As mãos trêmulas, o andar marcado pelo peso do tempo, as vozes num compasso da experiência.
Os elementos cenográficos me permitiram viajar para as minhas histórias, aos momentos os quais convivi com velhos, tanto em minha família, quanto em outras oportunidades do dia-a-dia, quando encontramos senhoras perfumadas, arrumadas em suas janelas à espera de alguém ou de um afeto, a contemplar a passagem do tempo ou à chegada do fim, pois como diz Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: lembranças de velhos,
A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembranças. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devaneios.
Quero destacar duas cenas. A primeira é a de um senhor em diálogo com as lembranças de sua esposa, representada pela pintura na parede. Ele desenha para não esquecer. Assim, sobre os papeis surgem cores e formas, imagens e recordações de sua vida, da mulher amada, materializada pelo deslizar dos lápis coloridos.
A outra cena, é da velha senhora, envolta por seu mosquiteiro-casa, à espera de seu amado filho que nunca vem, e que mergulha na esperança desse encontro, sustentada pelo cordão da realidade, que a faz emergir do mar da saudade para o aguardar cotidiano. Esse “quadro” me fez lembrar das várias imagens de mulheres que na história da humanidade esperam por seus filhos, maridos, amigos. O fiar silencioso enquanto Eles não retornam a sua Ítaca.
Só tenho a agradecer à equipe de Oração ao tempo, por ter proporcionado esse momento de lembranças, com cheiros de memórias em cada álbum, em cada imagem, em cada história apresentada.

O tempo tem tempo de tempo ser,
o tempo tem tempo de tempo dar,
ao tempo da noite que vai correr,
ao tempo do dia que vai chegar...


Denis Bezerra.
20.12.2014


sábado, 13 de dezembro de 2014

Sobre a Maresia dos Tempos de Experimentação

Espetáculo: Maresia. Grupo Projeto Vertigem.
Crítica produzida por Edson Fernando, Ator e Diretor Teatral.

Enquanto observava o bamboleio das três atuantes numa desenvoltura lúdica com os colares de conchas do mar durante a apresentação do espetáculo Maresia, do Projeto Vertigem, as questões inquietantes que alimentam esta reflexão me atravessaram: até quando a ênfase dos processos criativos em artes cênicas recairá na experimentação? Até que ponto esta ênfase não esgota – ou esgotou – a essência das artes do espetáculo? Em que medida a experimentação fragiliza os condicionamentos técnicos necessários para a manutenção da qualidade da cena? Quais os desdobramentos econômicos, sociológicos, filosóficos, políticos e ideológicos do uso indiscriminado da experimentação? Quando o uso da experimentação se volta contra os criadores e os tornam agentes anacrônicos da história e da cena local?
Embora estas questões tenham me atravessado durante a apresentação do espetáculo supracitado, elas não se dirigem especifica e exclusivamente a este grupo e sua montagem, mas estabelecem relação direta com boa parte da produção local em artes cênicas. Por este motivo, penso ser importante repercuti-las com os criadores locais para tentarmos juntos compreender o labirinto poético-conceitual em que nos encontramos. Sempre que necessário, no entanto, tomarei como exemplo, para ilustrar ou aprofundar alguma questão, as cenas de Maresia. É importante ressaltar ainda que, novamente, corro o risco de desenvolver as questões de modo hermeticamente voltado para os criadores, negligenciando, portanto, o papel de mediação com o público que cabe ao crítico. Assumo o risco compreendendo que a função em relevo colocada aqui é a de pensar criticamente a cena e não propriamente o da assinatura de uma crítica teatral.
O primeiro desafio que se impõe é o de saber lidar com os termos e seus desdobramentos conceituais. Então, quando falamos em experimentação no teatro invariavelmente remetemos a diversas práticas contemporâneas: teatro de vanguarda, performance,  teatro-laboratório, teatro de pesquisa, dança-teatro e – a mais em voga recentemente – teatro pós-dramático. Todas, no entanto, apontam para um lugar inicialmente comum: oposição e superação da relação tradicionalmente estabelecida pelo que se convencionou chamar de teatro burguês.
Opor-se e superar tal tradição exige de um processo criativo experimental a revisão de vários elementos estruturantes da linguagem teatral, tais como: destituição do texto como eixo principal; novas e diversas formas de conceber a relação palco-plateia; o público passa a ser parceiro da cena – dependendo da obra, de modo mais contundente e explicito – e não espectador passivo e submisso; atuante como mais um signo dentro do conjunto de elementos da obra – cenografia, sonoplastia, iluminação, figurino; pluralidade de sentidos em oposição ao sentido fechado e unívoco; vulnerabilidade das fronteiras entre as linguagens das artes plásticas, cênicas e performativas; entretenimento, ação política e fruição estética agrupadas – ou diluídas? – num mesmo ato.
Nada disso, no entanto, é novidade por aqui. Basta tomarmos como exemplo o trabalho do grupo Cena Aberta criado na década de 1970 por ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da UFPA e retratado de modo primoroso pela pesquisa histórica de Denis Bezerra. O trabalho inaugural do grupo, Quarto de Empregada, de Roberto Freira – dirigido por Luiz Otávio Barata com atuações de Margaret Refkalefsky e Zélia Amador de Deus – já atesta segundo Bezerra (2013, p.95) o uso de inovações que vão ao encontro de alguns dos elementos citados anteriormente.
Interessante observar como o trabalho deste grupo dialoga com as práticas catalogadas por Hans-Thies Lehman no período que compreende os anos de 1970 a 1990 e definidas como pós-dramáticas. Não somente dialoga como se insere no mesmo período histórico datado por Lehman. Não podemos negligenciar, então, os aspectos eminentemente políticos destacados pelo pensador alemão ao compreender as práticas pós-dramáticas como práticas pós-brechtianas, pois são tentativas diversas de se contrapor ao projeto de subjetivação do sistema capitalista voltado a passivar a percepção estética do público (2007, p.10).
A produção do Cena Aberta, neste sentido, encontra-se em consonância com as premissas pós-dramáticas como podemos atestar visitando os registros de alguns trabalhos emblemáticos do grupo, novamente pela lente de Bezerra (2013, p.100-2): Theastai, Theatron de 1983, dá início a exploração de uma poética fundada na corporeidade e, em particular, ao corpo nu como elogio a liberdade e protesto contra a repressão da Censura do regime militar; Genet: o Palhaço de Deus de 1988, Posição Pela Carne de 1989 e Em Nome do Amor de 1990 – todos dirigidos por Luiz Otávio Barata – compõem a trilogia do grupo que ratifica sua poética alicerçada na corporeidade e valorização da sexualidade além da vinculação à uma linguagem voltada para as origens ritualísticas e religiosas do teatro.
Observo, portanto, que a experimentação no contexto do Cena Aberta desenvolveu-se numa relação dialética entre a necessidade de forjar sua própria poética – forma – e o imperativo político que se impunha para discutir a conjuntura do país e da cidade – conteúdo. Experimentar naquele contexto configurava-se – dentre outras coisas – como ato de legitimação de uma arte de resistência política objetivando um modo de percepção que reconhecesse o público como elemento ativo e transformador do quadro social.
Vinte quatro anos nos separam de Em Nome do Amor, último espetáculo criado pelo Cena Aberta e me vejo em meio as questões que abrem essa reflexão, tentando compreender o labirinto conceitual em que estamos enredamos, sem saber se somos vítimas ou algozes da experimentação. É obvio que temos de considerar que a conjuntura é outra, o regime político é outro e que a formação dos grupos teatrais atende por outras motivações. Não se trata, portanto, de estabelecer uma analogia entre os períodos históricos e as formas de atuação poética-política, mas de procurar compreender como o conceito de experimentação tem potencializado o esvaziamento de uma visão holística que articule forma e conteúdo, poética e ética, arte e política. 
Voltemos, então, a cena que me disparou as inquietantes reflexões: o bamboleio que as três atuantes executam com os colares de conchas do mar. Há nesta ação do bambolear uma dimensão eminentemente lúdica: a descoberta do objeto – sua sonoridade, textura e balanço – sendo explorada no corpo das atuantes e provocando uma brincadeira de bailado entre elas. É notório que a movimentação, a marcação e quiçá a concepção da cena tenham sido estabelecidos a partir da experimentação com este elemento cenográfico – o colar de conchas do mar. Mas o que se estabelece para elem desta ludicidade? Podemos e construímos sentido para esta ação – afinal sabemos desde Ernest Cassirer (1874 – 1945) que o homem é um animal simbólico – mas o que se impõe em cena é o jogo experimental das atuantes com o objeto. Há desse modo, ênfase na experimentação enquanto forma, ao passo que o conteúdo se vê fragilizado e dependente de uma inferência lírica e pessoal do público.
Processo semelhante ao descrito nesta cena de Maresia ocorre com recorrência na produção local modificando-se, via de regra, somente o elemento indutor para o processo de experimentação. Quando isso se dá, fico sempre com a impressão de que cenas como a do “bambolear dos colares de conchas do mar” não foram feitas para serem assistidas e sim para serem fruídas na prática por cada espectador. O curioso é que esse convite por vezes não ocorre, como não ocorreu em Maresia. Ficamos provocados pela ludicidade da ação, mas não somos autorizados a praticá-la no palco e por isso recorremos à construção de um sentido simbólico para a cena. E quando o convite ocorre, inevitavelmente, o que se explora com o público é tão somente a mesma dimensão lúdica da experimentação a partir do objeto. Ou seja, a ênfase da experimentação enquanto forma aprisiona os gestos na dimensão lúdica apartando-os de sua dimensão econômica, política, sociológica, filosófica e ideológica.
Então, poderíamos nos questionar: Em que medida os processos de experimentação que assentam sua ênfase na forma tem contribuído para um posicionamento estratégico e político em nossa conjuntura? Por que continuamos experimentamos? Quem têm se servido desta espécie de experimentação?
Uma constatação lamentável pode ser extraída dos últimos atos organizados coletivamente pela classe artística em nossa cidade, ocorrida por volta de Junho de 2013: nossa capacidade de compreender a experimentação como ato altamente subversivo e implosivo se viu, e se vê, absolutamente desprovida de consistência e caráter histórico. Àquela altura o máximo que conseguimos foi gritar um “Chega!!!” as portas do Teatro da Paz, sem sequer incomodar uma única alma que fruía tranqüila e confortavelmente a abertura do XII Festival de Opera promovido pelo Governo do Estado do Pará. O exercício da experimentação se deu de que modo naquela ocasião? Reproduzimos uma forma de nos portarmos diante do Establishment seguindo os próprios princípios do Establishment: o grito comedido de “Chega!!!” estava pautado pela preocupação da repercussão do ato junto a opinião pública. Então, era perigoso ousar propondo qualquer tipo de experimentação mais radical. A experimentação como ato subversivo, no entanto, se pauta tão somente com vistas a implodir o que já está estabelecido, como mencionamos anteriormente. Nossa ação no que se convencionou chamar de “Movimento Chega”, não ultrapassou, portanto, a dimensão lúdica proposta pelas apresentações artísticas que foram colocadas na frente do Teatro da Paz.                         
É apenas um exemplo do quanto temos que aprender com os métodos que aparentemente são tão corriqueiros e recorrentes nos nossos processos de criação.
Outra questão pertinente é voltada a refletir sobre quem tem fomentado a experimentação como procedimento metodológico legítimo para processos de criação. Em nossa cidade, sem dúvida, merece destaque as Bolsas de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística promovidas pelo IAP – Instituto de Artes do Pará. São treze anos promovendo este tipo de fomento voltado às linguagens da fotografia, instalação, audiovisual, música, teatro, dança, poesia, curadoria e design. O próprio Maresia, do Projeto Vertigem, é resultado de uma dessas bolsas contemplada no ano de 2013. A questão, obviamente, não é afirmar o comprometimento de qualquer projeto vinculado às bolsas do IAP ou de qualquer outra agência financiadora – exemplo disso é a própria obra literária de Denis Bezerra citada anteriormente aqui ou mesmo o resultado do Projeto Vertigem –; muito menos colocar em xeque de modo irresponsável este tipo de fomento tão raro e escasso em nossa cidade quanto à seriedade na aplicação das leis de trânsito. Mas provocar o exercício crítico nos pesquisadores-artistas fazendo-os perceber que é preciso problematizar este lugar e tipo de experimentação. Do contrário, o exercício de ludicidade continuará a ser cada vez mais aprofundado por meio das experimentações mais variadas, em detrimento de uma experimentação que nos favoreça reconhecer nossa capacidade de protagonizar as mudanças desejáveis no momento presente.   
O desafio que atravessa todas as questões levantadas aqui parece ser impor ainda: Por que Experimentamos? Como Experimentamos? Pra que Experimentamos? O propósito não é encontrar respostas absolutas para estas questões, mas voltar o olhar para a própria prática artística compreendendo que na primeira questão – Por que Experimentamos? – encontra-se a dimensão filosófica de nosso trabalho, na segunda questão – Como Experimentamos? – os procedimentos e arcabouço propriamente poéticos do nosso fazer e, por fim, a terceira questão – Pra que Experimentamos? – nos coloca diante de nossa responsabilidade ética em face da conjuntura sócio-político-econômico de nossa sociedade.

Meu desejo é que o exercício crítico voltado a estas questões nos permita discernimento para compreender o presente e não perder os trilhos da história e, quem sabe ainda, perceber e atuar com os elementos que nos levem a descoberta de uma era pós-experimentação.