domingo, 30 de agosto de 2015

O espelho que reflete o Absurdo - Por Silvia Luz.

Autora: Silvia Luz. Atriz e Professora Mestre em Artes / PPGArtes/UFPA. 

Na portaria aperto a campainha nº 2 e uma voz pede para eu subir.  Subo e deparo-me com uma Dama vestida de preto. Agora, estou no segundo andar, um ambiente com pouca luz, sofás vermelhos e um retroprojetor que lança na parede frases diversas. A jovem desloca-se no espaço com uma taça de vinho e de repente puxa conversa com um grupo de pessoas que está no mesmo sofá que eu.
Pediu-nos para escrever uma frase no papel que estava em sua prancheta, escrevi a seguinte:  “O fim é o início de tudo”, a outra pessoa que estava ao meu lado escreveu algo sobre solidão e a jovem Dama começou a falar conosco sobre esse assunto, pois toda vez que alguém apertava a campainha, ela ansiosa corria, pois esperava duas pessoas e as mesmas nunca chegavam.
Ela nos convidou para adentramos outra sala, meus olhos curiosos percorreram o espaço e em seguida sento-me. Diante de nós está um objeto oval vermelho, que depois de aberto transformou-se em uma poltrona e tinha também uma tela de plástico aparentemente verde e por trás dela havia uma bancada com dois atuantes manipulando seus respectivos computadores, estavam com trajes neutros e máscaras, o curioso é que as máscaras eram estilo do Boi de São Caetano de Odivelas.
O que vi foi uma explosão de tudo, um “Absurdo”, uma revolução de linguagens. Foi surreal, disparatado, insólito. Imagens eram lançadas na tela e no espaço todo, senti-me às vezes num labirinto, era tudo muito confuso, imagens, vozes, sons... a loucura do mundo atual. Essas características são marcas do Teatro do Absurdo, o enredo, as personagens e o diálogo aos meus olhos eram sempre ilógicos, desatinados, sempre caminhamos em círculos e esse caminhar nos revela o de sempre, que estamos atolados na ausência de soluções para os seres humanos em nossa sociedade.
Os atuantes descreveram o espaço em níveis de 1 a 4, os espaços do Estúdio Reator. Os dois atuantes eram chamados de Homem 01 e Homem 02; a lavagem cerebral acontecia em 11 níveis, logo tudo é cronologicamente marcado, mas ao mesmo tempo psicológico e não linear.
Como a apresentação foi marcada pelos números, enumerei as cenas, sendo que a (des)ordem pode não ser exatamente como foi na apresentação, mas que atiçou um dos meus sentidos. A Cena 1 fala do círculo; que todos nós vivíamos num e, que dentro dele éramos felizes e seríamos protegidos. As cenas aconteciam em janeiro de 2015, julho e agosto de 2020, mais uma vez a cronologia presente.
A imagem do círculo foi projetada na tela verde, no ator, no espaço, na poltrona em todo lugar o círculo era visível. Na cena 02, o Homem 02 sentava-se na poltrona e ficava ao celular. Em outra cena – agora cena 03 – o Homem 01 lia um texto sobre sua vida, ele morava só e criava vários bichos, cobras, rolas, escorpiões, caramujo, peixes entre outros e alimentava todos apropriadamente quando ia dormir. Os bichos dormiam com ele, todos. Eram seis cobras e todas aninhavam-se em uma parte do seu corpo, a cobra 01 enrolava-se em sua perna direita e a número 02 na perna esquerda, recordo-me que uma aninhava-se em seus escrotos, sexo, pernas braços e os outros bichos abrigavam-se minuciosamente em cada parte do seu corpo, nada ficava sem animal, somente o peixe do aquário que o observava de longe, assim ele dormia em meio a companhia de todos eles e ao amanhecer seu corpo estava todo machucado.
Ao narrar esse texto o Homem 01 estava na bancada dizendo o texto, ao mesmo tempo que seu rosto refletia na tela verde e sua voz ecoava, era uma mistura inebriante e medonha, enquanto o Homem 02 diante da tela sentado na poltrona deliciava-se ao celular, o espectador via a cena da poltrona com o atuante de costas, nesse momento o Homem 02 assistia ou não o Homem 01 por meio da tela.
A cena 04 falava de uma lavagem cerebral que existia em 11 níveis, chego à conclusão que os círculos que nos aprisionam é a lavagem cerebral. Um dos círculos que aprisiona hoje é a internet e seus recursos, ao mesmo tempo que nos conecta nos afasta humanamente um do outro e isso é uma verdadeira lavagem cerebral, esta traz liberdade e felicidade.
A cena mais instigante é a Cena 05, a do espelho. O Homem ao se barbear ouve o espelho emitir um barulho. Assustado não acredita, mas o barulho se repete e isso acontece em vários dias, meses. Com o passar do tempo o espelho repete palavras ensinadas pelo homem, começa um possível diálogo entre eles. Nesta cena o Homem 01 está na bancada diante do computador atuando e sua imagem é refletida na tela, enquanto o Homem 02 está na frente da tela desmontando o que seria o espelho, que fora armado anteriormente pelo Homem 01, este composto de uma base de ferro e um suporte do mesmo material, sendo que o espelho era a poltrona vermelha, que em todo momento da apresentação refletia a imagem de um olho. O olho que tudo vê e nada vê.
O diálogo entre o espelho e o Homem 01 continuava e, em um determinado momento, o espelho começou a gritar: - Socorro!!! Socorro!!! E o Homem ficou assustado e não acreditava no que estava ouvindo. Não sabia o que fazer até que resolveu entrar no espelho e lá permaneceu, preso em seu círculo. Não quebrou o espelho pois seria um crime, preferiu aprisionar-se no espelho e encontrar a voz que saía do mesmo.
A apresentação é despojada de convenções, é arbitrária e imaginativa, foge a estrutura lógica do teatro tradicional. Remeto-me novamente ao Teatro do Absurdo quando é posto a existência humana sem sentido num universo governado pelo acaso. O que vi parecia reflexo de sonhos e pesadelos do Homem 01, mas uma aproximação com o Teatro do Absurdo, pois um dos maiores dramaturgos do teatro do absurdo, Eugéne Ionesco retratava assim os personagens que ele criava, não eram reconhecíveis; igualmente como Homem 01 e o Homem 02, assemelhavam-se a bonecos e isso foi pontuado por meios do uso das máscaras e roupa neutra, que curiosamente eram iguais ao vestido da Dama de preto; o diálogo é confuso e às vezes incoerente, remetendo-nos ao isolamento muitas vezes.
O que contribui também para isso foi o não entendimento do texto dito pelo ator Dudu Lobato que fazia o Homem 02, quase não entendia o que ele dizia, pouco volume de voz, devido a riqueza de sons e imagens a voz se perdera por alguns momentos e isso facilitou minha fuga para outro círculo, no caso o visual.
Percebo a linguagem da “peça” como híbrida, acredito que é a única linguagem que dá conta do que vi. Seria Performance Arte ou Performance Híbrida? Segundo Renato Cohen em seu livro Performance como Linguagem (2004):

[...] é impossível falar-se de uma linguagem pura para a performance. Ela é híbrida, funcionando como uma espécie de fusão e ao mesmo tempo como uma releitura, talvez a partir de sua própria ideia da arte total, das mais diversas – e às vezes antagônicas – propostas modernas de atuação. (COHEN, 2004, p. 108).

Trago os conceitos acima pois o próprio diretor e atuante da peça Nando Lima intitula seu trabalho como Peformance, então para promover o debate, que mutações são essas que a Arte sofre atualmente? Sabemos que é impossível uma definição única do que vem a ser se guiarmos pelas Artes Visuais, Teatro, Dança, Música, Cinema, ela pode ser multicultural, multimídia, mas tenho certeza que ela é criativa por excelência.
Essa mistura toda em determinado momento me entediou, mas pensei: “Não posso fechar-me no meu círculo, preciso quebrá-lo e chegar ao fim. Mas que fim?” Essa demora fez-me solitária e insignificante em minha existência, diante de tanta informação, cores, sons, imagens. Assim muitas vezes nos sentimos nesse mundo tecnológico e veloz. Essa velocidade nos aprisiona, cada um em seu círculo; estamos sozinhos com nosso celular e outros aparelhos eletrônicos, isso é constatado no início da apresentação, onde cada espectador faz um self com a atuante Pauli Banhos que aos meus olhos foi a Clepsidra, de Camilo Peçanha ou relógio de água do espetáculo - esse foi um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo. A atuante realmente estava naquele lugar, gostaria que ela encontrasse as duas pessoas que esperava há tempos.
A marca da apresentação, o tempo, àquele que já foi e o que já é, este tempo que em questão de segundos se esvai – o self já estava nas redes sociais –; essa rapidez nos aprisiona dentro do espelho, que pode ser qualquer coisa, nesse caso é a rede da internet, isso é uma lavagem cerebral, mas aceitamos, pois lá podemos ser livres e felizes.... Tu entrarias ou quebrarias o espelho?

Por Silvia Luz

30.08.2015

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Iluminadas lembranças entre sofrimentos escuros.

Autora: Louise Bogéa.
Servidora Pública Federal do Museu da UFPA.

Instalação Cênica “VISITA A CASA DA ATRIZ” – 2º movimento

Companhia Atores Contemporâneos

Apagaram-se as luzes da casa, convidando-nos a entrar. Rosas ao chão, vestidos pendurados no teto e lanternas pelos cantos: assim fora montado o cenário em apenas uma sala redonda, rodeada por portas e janelas. O pequeno público, sentado ao redor do círculo, assistia a cinco talentosos atores entre silêncios e repentinos barulhos de seus movimentos ao entrar e sair pelas portas, acompanhados por músicas francesas e instrumentais sinistros. A cena inicial fora marcada por batidas fortes em uma das portas, seguidas pela entrada de cada ator com objetos em suas mãos, constituindo um clima tenso, capaz de segurar a atenção dos presentes até o toque de uma música francesa, mudando o foco da cena para os vestidos acima de todos. Conflitos surgem entre os atores em forma de discussão, incluindo um momento romântico, com o sofrimento dramático enfatizado, em meio a desilusões e lamúrias. Apesar de um enredo pouco repetitivo, as falas foram merecedoras de aplausos, sendo elas realçadas a partir da clara divisão entre as atuações individuais. O tema central, ligado ao tempo, retrata as nossas memórias marcadas por sonhos, sendo mais especificamente abordado a partir do lar familiar, de onde viemos, e que nunca esquecemos, fazendo parte de nós. A peça se encerra com a entrega de um pequeno ramalhete de flores a alguns dos presentes, em agradecimento. Não tenho certeza se a intenção era a de fazer rir, mas, mesmo em um clima tenso e sinistro, alguns dos presentes estavam rindo como eu. Enfim, recomendo que visitem a casa no próximo fim de semana.
Louise Bogéa.
24.08.2015

terça-feira, 25 de agosto de 2015

De Vladmir e Estragon à Dama de Preto: No encalço de Godot. Ainda (?).

Autor: Edson Fernando.
Ator, Diretor Teatral e Professor de Teoria do Teatro da ETDUFPA.  

A interrogação proferida de assalto causou surpresa: “Eles vieram com vocês?”. A voz feminina, que não precisa se esforçar para ser sensual, é quem faz a inquisição. A pergunta em si não é o que gera a surpresa, mas sim o uso do pronome na terceira pessoa do plural: Eles. A espera agora é por eles. De imediato suspeito que, por algum motivo desconhecido, havíamos acreditado por muito tempo se tratar de apenas um, quando na verdade seriam dois – ou mais – os misteriosos e ilustres indivíduos dos quais se tem pouquíssimas informações – pra ser exato, somente se sabe o seu nome, Godot – mas em quem depositamos enorme esperança. Godot(s), talvez uma porção deles para nos fazer acreditar que ainda é possível algum fio de esperança.
Essa premissa, no entanto, foi se desfazendo na medida em que entro em contato direto com a Dama de Preto – a dona da voz que me recepciona na entrada – e, pra ser mais exato ainda, quando ela nos permite adentrar no seu universo paralelo. Mas até que isso ocorra efetivamente, a possibilidade dos Godot(s) me cerca e inquieta.    
O primeiro contato com a misteriosa Dama que resguarda a face usando um broche de cabeça com voilette é mediado pelo interfone; relação de contato indireto, o primeiro dos muitos contrastes – e por que não dizer, paradoxos – que serão construídos entre o real e o virtual. Depois da pergunta supracitada, hesito por alguns instantes até confirmar que “eles” estão em minha companhia – acreditando que assim, estabeleço com ela um imediato pacto com o jogo proposto; o portão é automaticamente destravado, permitindo o acesso à escada que levará ao encontro direto com a figura feminina vestida completamente na cor preta. Simpática e muito elegante, portando com altivez uma generosa taça de vinho, ela segue seu rito para com os recém chegados: conduz-me até sua mesa e providencia os ingressos para logo em seguida convidar-me a tirar uma selfie ao seu lado. O ambiente tem pouca luz com um globo espelhado distribuindo a iluminação por todo espaço; a sonoridade é composta por alguns jazz tocados ao fundo mecanicamente – jazz que lembram os bons e velhos filmes noir.
A Dama de Preto passeia pelo espaço – sempre altiva – e em meio às conversas triviais e cotidianas dos que ali se fazem presentes aproveita para pautar com naturalidade o tema que realmente lhe assola: a solidão. Embora com semblante aparentemente resignado, ela persiste na esperança de quê em alguns instantes “eles” cheguem, ou regressem para interromper sua imensa solidão. Mas logo constata que mais uma vez “eles” não comparecerão – pelo menos não naquela noite. Talvez por isso, mais uma vez, reste-lhe somente a alternativa de se recolher ao seu universo paralelo; para um lugar onde tempo e espaço simulam – ou dissimulam (?) – o encontro com “eles” e o encontro consigo mesma. As portas, então, são descerradas e somos convidados a procurá-los – ou nos procurar (?).  
Uma espécie de caverna escura se apresenta. Logo na entrada a direita, duas criaturas trajando roupas completamente pretas e luvas brancas observam desconfiadamente, àqueles que entram; a expressividade da face é ocultada por máscaras brancas de narizes pontiagudos – talvez as mesmas usadas por alguns personagens do Boi de São Caetano de Odivelas. São estes mascarados que quebram com a harmonia futurista dos elementos disposto no centro do espaço: um enorme painel translúcido, uma espécie de monólito totêmico constantemente atravessado por luzes e imagens que se confundem com os próprios mascarados que se encontram quase sempre atrás do painel; a frente do painel um módulo oval vermelho contrasta com todas as paredes escuras – o grande olho nervoso que vigia energicamente todos os visitantes. É necessário atravessar a caverna para encontrar os assentos; a Dama de Preto nos conduz e se acomoda ao fundo – na última fileira de assentos – posicionando na extremidade oposta aos mascarados – longitudinalmente. A porta se fecha dando dimensões gigantescas e soturnas ao lugar.
Imerso na caverna, resta apenas acompanhar passivamente o fluxo constante de imagens fugidias e multicoloridas que vão se avolumando bem a nossa frente sem que se possa capturá-las nitidamente ou mesmo processá-las numa linearidade confortante.  Oníricas, elas provocam nossa imaginação precipitando a mente para uma autorreflexão contumaz. O espaço/tempo é fracionado em dois: Janeiro de 2015 e Junho/Agosto de 2020; passado e futuro colocando em xeque a realidade do presente, questionando-a por meio de constructos criados a partir da potencia poética do círculo e do espelho, ambos tematizados tragicamente a partir da solidão; sim, a mesma solidão que ata os dois mascarados à Dama de Preto. Os três se encontram no mesmo lugar – a caverna – mas não há encontro; ou melhor, o encontro apenas ocorre no início da odisséia imagética quando os mascarados bailam descontraída e desajeitadamente diante do painel totêmico; parecem ter ciência de que o encontro só é possível no simulacro da virtualidade digital; encontro na condição de sombras, pois ao retirarem suas máscaras e revelarem suas verdadeiras faces, o vazio se abre entre eles e, então, novamente encontram-se fadados ao isolamento, ao desencontro, à solidão. 
Subitamente recordo novamente Godot(s) e, então, começo a desconfiar que a Dama de Preto espere na verdade por Vladmir e Estragon; não poderia esperar por Godot pelo simples fato de saber que ele nunca veio e nunca virá; pensá-lo no plural a esta altura me parece completamente descabido. A Dama de Preto encontra-se a espera, portanto, de quem já perdeu a esperança por Godot. Enreda-se desse modo, num ciclo vicioso que imobiliza a todos: Godot não virá não se sabe os motivos, mas ele não veio e não virá; Vladmir e Estragon também não poderão vir, pois embora tenham desistido de esperar por Godot, nada conseguem fazer diante da certeza de que “não há nada a fazer”.
Sentada ao fundo da caverna resta a Dama de Preto contemplar desoladamente apenas as sombras daqueles que há muito tempo cansaram de esperar, mas nada conseguem fazer para sair do círculo, pois reconhecem nele – o círculo – a proteção perfeita para lhes livrar dos males do real; renunciaram ao real refugiando-se no espelho da virtualidade digital. A única liberdade e felicidade possíveis depois da lavagem cerebral.
* * *
Enxertos críticos – Elementos Técnicos
Opção da Montagem: O experimento híbrido de linguagens proposto por Nando Lima desafia a reflexão crítica a pensar por lugares não convencionais para não incorrer num discurso categórico vazio de sentido, posto que ao assumir claramente a opção pelo hibridismo, o trabalho tenciona os elementos formais das diversas linguagens envolvidas operando radicalizações que nos desautorizam a analisá-lo pelas lentes tradicionais. Diretor e atuante na montagem À sombra dos homens ausentes ele define o experimento como Performance.
Articulação e abordagem proposta do Conteúdo: O contexto da situação, de alguma forma, me atou com a atmosfera da primeira peça de Beckett: a rua quase deserta, a recepção impessoal pelo interfone contrastando com a pergunta intimista sobre a vinda “deles”, os procedimentos de aquisição de ingressos intercalados com os selfies com os espectadores que vão chegando, entusiasmo e desalento oscilando subitamente no estado de espírito da Dama de Preto que nos revela pistas frágeis sobre como e onde “eles” estão, revezamento entre atuante e personagem (?) – hora Dama de Preto, hora Pauli Banhos. Somados, estes elementos instauram uma atmosfera absurda – características similares ao Teatro do Absurdo do dramaturgo e poeta irlandês – tal qual a vivenciada por Vladmir e Estragon na deserta estrada rural onde se encontram, próximos a uma única árvore, esperando por Godot. A sucessão de ações dramáticas (?) dentre da sala de apresentação reforça o tema do sentido – ou o sem sentido – da vida sendo colocado na perspectiva das linhas de fuga do mundo virtual. Assim, esta foi a lente que me permitiu me aproximar da montagem para, então, discuti-la e repercuti-la.
Dramaturgia: A sucessão dos acontecimentos que se passam na sala de apresentação segue a forma épica: independência e autonomia entre os quadros, ênfase na figura do narrador, parábolas divididas e situadas em duas esferas de tempo: o ano de 2015 e o ano de 2020. Tal divisão permite potencializar o gênero oposto, o dramático, pois embora a proposta seja claramente delineada no gênero épico, há fortes elementos que invadem os quadros, intensificando e corporificando uma espécie de “drama” universal que assola a humanidade e que se encontra diretamente ligado a nossa relação de dependência existencial com o mundo virtual. A cadeia estabelecida entre o intervalo de cinco anos que separa cada conjunto de quadros nos permite estabelecer o fio condutor para um desenlace trágico ao final da montagem. Desenlace trágico, mas curiosamente sem clímax – fruto é claro da estrutura eminentemente épica da montagem. As narrativas desenvolvidas em alguns quadros – fundamentalmente os narrados por Nando Lima – me dão a impressão de um texto forjado no processo criativo, no calor da experimentação da sala de trabalho; narrativa que nasce dividindo espaço com as vicissitudes dos atuantes, diretamente ligadas à relação que cada um estabelece com o mundo virtual e tecnológico que nos cerca. Este traço característico de depoimento pessoal deixa borrado, desse modo, os limites entre ficção e realidade, entre fábula e autobiografia. A exceção é o vídeo inicial apresentado por personagens do universo virtual Second Life; aqui temos claramente a distinção entre o real e o virtual; curioso, pois parece que a intenção com este vídeo logo no início da apresentação era exatamente o contrário.   
Atuações: O caráter autobiográfico da dramaturgia libera os atuantes para desempenharem suas ações não pautadas pela composição de uma personagem. Isto vale também para Pauli Banhos, embora ela se encontre em situação diferenciada em relação aos dois protagonistas (?) da performance: seu espaço de atuação situa-se a margem dos acontecimentos; trata-se de uma marginalidade de espaço – ela atua fundamentalmente na antessala do Estúdio Reator – , mas também uma marginalidade de tempo, pois hora somos levados a acreditar que se trata de uma personagem que se encontra num tempo passado – a trilha sonora na antessala é o principal indício –, mas sua ação de descerrar a porta, adentrar e posicionar-se ao funda da sala de apresentação dá contornos extemporâneos ao seu papel. Atuando na antessala Pauli transita entre as ações triviais e necessárias de recepção do espectador e as ações do seu papel. Novamente temos borrado as fronteiras entre ficção e realidade, pois a desenvoltura natural e segura da atuante não nos permite definir categoricamente se a ação de tirar o selfie com os espectadores é parte da fabulação ou simplesmente registro da atuante para efeitos de publicidade da montagem nas redes sociais. De qualquer forma, Pauli domina bem este espaço, mesmo quando percebemos claramente que se trata da bilheteira da montagem. O mesmo não se percebe no desempenho de Dudu Lobato. O atuante parece não estar à vontade neste lugar híbrido de depoimento pessoal e atuação cênica. Assim, nos quadros que ele conduz à narrativa é perceptível um ritmo mais lento e com pouquíssima entonação de voz; a narrativa segue boa parte do texto em ritmo linear e com variações mínimas de interpretação; embora a visualidade e a sonoridade instiguem e componha o quadro, a falta de domínio técnico no trato com o texto compromete o andamento da montagem que nestes momentos se torna monótona e enfadonha. Em contrapartida, a atuação de Nando Lima é sui generis: sua desenvoltura em cena nos oferece um misto de ator e narrador, dando-nos o equilíbrio necessário para seu desempenho enquanto performer. Nando domina com maestria o espaço cênico, seja controlando os equipamentos eletrônicos, seja interpretando dramaticamente a narração dos textos de seu quadro, ocasião que imprime um colorido que nos captura a cada palavra, a cada pausa ou semipausa; Nando degusta as palavras, desvenda o texto mostrando-se intensamente em cada frase proferida, dando-nos a dimensão autobiográfica de seu depoimento com naturalidade. Consegue, desse modo, revelar-se sem necessariamente utilizar a composição de uma personagem, imprime drama em sua narrativa sem escorregar para a mera leitura dramática ou dramatizada. É a boa combinação dos elementos técnicos que permite a ele sobressair-se como performer.
Observação Final: o último quadro da montagem me instigou bastante, pois nele se problematiza sobre o lugar do real: Seguramos o espelho ou somos a imagem refletida? Na parábola de Beckett, Vladmir e Estragon diante da desesperança pela não vinda de Godot, resolvem que a saída é a forca, embora nenhum dos dois consiga realizar o feito ou realizar coisa alguma. “NÃO HÁ NADA A SER FEITO”, é a constatação da imobilidade em que se encontra o homem. Diante do espelho, o que nos resta a fazer: desejar a mesma forca de Vladmir e Estragon (imobilidade), estilhaçar o espelho ou encontrar nele o refugio dissimulado para todos os problemas? Até quando insistiremos na sombra de Godot? Ele não veio e não virá. Não estamos salvos, não haverá salvador e é necessário tomarmos uma atitude urgente.
Edson Fernando

25.08.2015