quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A Casa das Madalenas – Por Geane Oliveira

Credenciais da Autora: Graduanda em Licenciatura em Teatro UFPA; Participante do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.

“Entre, divirta-se, beba, dance e assista! Usufrua do prazer que nossas Madalenas lhes oferecem!”. Esse era o convite da Casa das Madalenas.
Ah! Cabaré! Lugar de puta, de uma época em que se tinha orgulho de ser puta, período da Belle Époque.
Apresentação do cabaré: palco onde as Madalenas dançavam e ostentavam suas habilidades na cama, o escritório do dono do estabelecimento, um quarto onde ocorriam cenas dos encontros das Madalenas e um bar; nesse as vendedoras estavam atentas aos pedidos dos clientes (espectadores), qualquer pedido (três tipos de bebidas alcoólicas eram oferecidos) deveria ser pago, algumas poucas mesas e cadeiras estavam disponibilizadas aos “clientes” (espectador), o que deixava o público na expectativa do show.
Prostituta/Madalena o que vais me oferecer? As Madalenas dançam como me foi prometido no inicio, mostram seminus os seios e a bunda, bebem, choram e brigam. Mas continuo aqui esperando me sentir parte desse meretrício. Sou cliente apenas quando se trata de comprar bebidas, não participo do jogo. Estou para alimentar a cenografia, devo pedir minha bebida sem atrapalhar a cena. Começo a questionar qual a necessidade de colocar uma parte do público nas mesas e a maioria no praticável. O texto não é direcionado para quem está nas mesas – a quarta parede está bem estabelecida –, o público do praticável também é ignorado. E eu que achava ser cliente me desaponto. Me deixe entrar! Posso ser PUTA como você, ou uma cliente sedenta de prazer! A posição em que estou não me excita.

Sou puta
Quando uso a boca vermelha
Meu salto agulha
E meu vestido preto.
Sou puta
Mordo no final do beijo
Não fico reprimindo desejo
Nem me escondendo na aparência de menina.
Sou uma puta de primeira
Acordo as 6:30
Pego o ônibus debaixo de chuva
Não dependo de salário de macho
E compro a pílula no final do mês.
(Helena Ferreira)

Esta é a descrição da puta atual. Essa puta, luta por direitos e contra políticas de repressão. E tu Madalena que vens da Belle Époque, não vais dizer nada? Tu me conta apenas a história de um período do meretrício de Belém sem associá-lo ao contexto atual, deixando o espectador em uma camada rasa, seduzido com a história, mas podes não produzir uma reflexão critica de sua realidade. Tu fizeste acreditar através da disposição de palco que sou cliente, logo descubro que não. Então esperei teu discurso, mas nele tu não abordas a luta das putas atuais, não defendes e nem mesmo acusa tuas companheiras. O que querem as Madalenas? Tu prometeste muito, as pré-liminares me agradaram, mas não cheguei ao orgasmo.

Madalena tu és PUTA ou boneca inflável? 

Geane Oliveira

16 de Dezembro de 2015.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Tenso como a batida do tambor. Suave como as brincadeiras de roda. Quem é essa GEMTE-Demônio? - Por Edson Fernando

Credenciais do Autor: Professor de Teoria do Teatro da escola de Teatro e Dança da UFPA.

O primeiro contato parece costumeiro e pouco revelador: sete jovens de estatura mediana (quatro homens e três mulheres), franzinos – em sua maioria –, gente que traz no corpo os traços miscigenados de origem indígena, africana e européia; o tambor, com traços de cerâmica marajoara, destaque-se entre os instrumentos e compõe a paisagem visual, em forte alusão a cultura amazônica; tudo indica apenas mais uma intervenção artística em louvor aos orixás e as matrizes afro-amazônicas que aqui se estabeleceram. Os primeiros toques do tambor não inauguram nada que possamos identificar como novidade, salvo o advento do rito que tem seu início naquele instante. Num breve lapso de tempo o eco tímido do tambor opera a transfiguração do lugar, da paisagem e, fundamentalmente daquela gente simples que agora se vê envolvida, ou mesmo instala em si, a atmosfera do sagrado. A sonoridade convoca as vozes dos seis recém-iniciados que, rompendo o silêncio inicial, entoam o pedido de abertura dos caminhos; uma espécie de transe primitivo lhes dilata os poros, expande suas mentes e, com o passar do tempo, me esmaga na cadeira. Não os reconheço mais, pois suas identidades cotidianas ficam em suspenso e deixam fluir o autêntico demônio – na acepção primitiva, aquele que tem acesso a uma luz transcendente, uma espécie de “iluminação superior às normas habituais, permitindo ver mais longe e com mais segurança” (CHEVALIER, 2007, p.329) – que lhes habita. É uma nova espécie de gente que me confronta: GEMTE-Demônio capaz de colocar em perspectiva de forma arrebatadora valores culturais, crendices e manifestações populares, espiritualidade, ética e arte; GEMTE-Demônio que não pede licença para rasgar os alicerces de nossas certezas narcísicas e logocêntricas; a eles não cabe o sussurro terno, mas a vociferação; a estupefação no lugar da epifania mansa; o urro incontido de dor voltando-se contra a opressão dissimulada, contra o preconceito velado e asqueroso; como dançarinos suicidas à beira do abismo, essa GEMTE-Demônio convida a bailar, Dança-Cruel para triturar os órgãos falidos da cultura; mas também brinca de roda essa GEMTE-Demônio, afrouxando o arco voltaico no momento exato de saturação do pólo oposto e, então, de suicidas dançarinos se transportam, sem cerimônia, para a dimensão dos gêmeos Cosme e Damião, momento lúdico do folguedo do boi e da contação dos causos. Quem é essa GEMTE-Demônio que assusta e encanta, brinca e pune, afaga e machuca celebrando a vida sem abrir mão dos ensinamentos da dor?
Parte destas questões encontra solução simples se perguntarmos quem são os realizadores da montagem teatral intitulada “Da cabeça aos pés”. Trata-se do GeMtE – Grupo Experimental de Teatro. O grupo já soma seis anos de pesquisas voltadas à montagens teatrais marcadas pelo desejo de aproximação do teatro com as linguagens da dança, artes plásticas, performance, música e audiovisual. Em “Da cabeça aos pés”, este projeto efetiva-se, particularmente, pela excelente trama envolvendo dança e música. A direção da obra, e também do grupo, é assinada por Keila Sodrack, atriz que já dividiu o palco comigo, há tempos atrás, e que agora apresenta um sólido e consistente trabalho de direção teatral. Sodrack brinda-nos com uma obra livre de excessos formalistas que, via de regra, tende a aprisionar projetos desta natureza ao experimentalismo fortuito e gratuito. Sob a batuta da diretora tudo parece milimetricamente calculado e planejado: a movimentação precisa dos atuantes, as canções, a visualidade dos poucos adereços cênicos, o palco vazio, a não linearidade das cenas encadeadas de modo a valorizar o efeito de clímax em determinados momentos – muito particularmente na passagem da cena da negra Anastácia para a, imediatamente posterior, cena que retrata o folguedo do Boi Bumbá – seguido do necessário relaxamento da curva dramática da montagem. Este último elemento é o que mais se destaca merecendo atenção e louvor, pois demonstra um apurado trabalho de direção tanto no trato de cada parte da obra – isto é, um olhar sensível para tencionar o necessário em cada cena – quanto no trato do todo – isto é, um olhar sensível para ajustar as diversas partes num todo coeso e vigoroso.
Outro elemento que impressiona e traz satisfação é o modo como Keila dirige a montagem indo ao encontro da fundamentação teórica que alicerça a pesquisa, isto é, o universo das encantarias afro-amazônicas sem, no entanto, incorrer numa linguagem hermeticamente voltada para os iniciados nas manifestações afro-religiosas. Certamente há na montagem teatral uma série de códigos e símbolos que somente podem ser lidos por aqueles que conhecem ou vivenciam a prática dos terreiros afro-religiosos. Não é o meu caso. Sou absolutamente ignorante nesta matéria, não sabendo identificar nem mesmo uma das divindades mais cultuadas nestes terreiros, Yemanjá. Lamento a ignorância e reconheço que, em certa medida, ela é fruto de uma bem sucedida estratégia de perseguição a estas práticas religiosas, estratégia esta que se encontra impregnada na educação brasileira, infelizmente, ainda hoje. A questão que merece destaque, contudo, encontra-se no fato da montagem fundar sua potência criativa no universo das encantarias afro-amazônicas, mas não se limita e nem se esgota somente nelas. Elas são – as encantarias – por assim dizer, o trampolim que permite dar o salto para articular questões universais, nos atando àquilo que ainda nos torna membros de uma mesma comunidade: nossa humanidade. Nesta instância, o olhar não persegue mais os códigos de origem e sim a operação alquímica efetuada por esta GEMTE-Demônio em cena. É isto que me prende, fascina e assola.   
Estamos, portanto, tratando agora do campo em que a direção pouco pode fazer para colaborar, salvo observar atentamente e cuidar para que o sagrado não seja profanado pelos deslizes formais da montagem. Falo da alquimia efetuada pelos sete atuantes em cena a partir do que identifico ser um processo antropofágico estabelecido entre som e movimento. De um lado temos seis atuantes repletos de vigor e pré-expressividade – Alice Alves, Andrey Sales, Ca Brito, Nana Alcoforado, Wagner Guimarães e Yuri Granha; do outro o atuante-percussionista Diego Vattos construindo uma poderosa atmosfera sonora. Inútil e desnecessário dizer qual das partes é indutora do processo, pois há na verdade um ponto de convergência brutalmente marcado por um impulso antropofágico no qual vemos o som devorando os atuantes, mas também os atuantes devorando o som numa retroalimentação sem início e fim determináveis. Assim, a intervenção sonora da percussão intensifica e relaxa cada momento da montagem, mas também é intensificada pela dilatação pré-expressiva dos seis atuantes. Esta é uma das chaves da operação alquímica oferecida por esta GEMTE-Demônio.
Os atuantes merecem créditos também por não enveredarem, em nenhum momento, para uma representação mimética dos papeis cênicos que desempenham. Depois de instalar um espaço genuinamente liminar no palco, não há nada a ser representado; tal como pretendia o visionário francês Antonin Artaud, o que nos é oferecido no palco “é a própria vida no que ela tem de irrepresentável” (DERRIDA, 1995, p. 45). É nesta perspectiva não representacional que a montagem ganha ainda mais vigor ao não se deixar envolver por armadilhas recorrentes que, invariavelmente, ocasionam a simples reprodução da espetacularidade dos ritos. Não acredito nesta via, pois o rito não presta a imitações espetaculares, se vivencia fenomenologicamente.   
Feitas estas considerações arrisco uma reposta acerca dessa GEMTE-Demônio: é o tipo de gente que mantém filiação com a tradição dos dançarinos metafísicos balineses, com o dançarino epilético mexicano proveniente das terras dos índios Tarahumaras, ou ainda com o autêntico praticante do atletismo afetivo. Esse tipo de gente me encanta, pois possuem a nobre arte de nos fazer gritar. E em meio à letargia reinante precisamos muito dessa GEMTE-Demônio provocando gritos de dor, alegria, angústia, indignação, horror, afeto, tristeza. Precisamos reaprender a gritar.  
Edson Fernando

14 de Dezembro de 2015.