domingo, 28 de fevereiro de 2016

Tudo que nos resta é tomar uma cerveja – Por Edson Fernando

Autor da Crítica: Edson Fernando, Professor de Teoria do Teatro da Escola de Teatro e Dança da UFPA.  

Considerações a Performance "Em caso de emergência quebre o vidro".

Endógena
Tudo que nos resta é tomar uma cerveja. ### Antes que seja mal interpretado, esclareço que sou apreciador de uma boa cerveja gelada; o primeiro copo quando vertido sem intervalos, a goles largos, provoca uma sensação de prazer inigualável a qualquer outra bebida alcoólica. Se a pedida for servida numa latinha ou na charmosa garrafinha long neck, invisto em dois ou três goles grandes, ininterruptos, para garantir o mesmo deleite do primeiro copo. Depois da primeira, seguir vertendo mais algumas – ou muitas – deliciosas “louras” é quase um ato incontrolável, dado o contato solene e divino instaurado a partir da primeira degustação. ### É a dimensão dionisíaca que se abre com todo o seu furor e arrebatamento; nela, elevamo-nos também a categoria de deuses e somos lançados para o ponto anterior a instalação do teathron; como ditirambos de outrora nos é solicitado entoar os cânticos a Dioniso, mas apenas alguns se atrevem timidamente a gravar suas impressões subjetivas no muro em ruínas do edifício teatral; ao que parece, o verme da consciência ainda não ruiu completamente com nosso textocentrismo e seguimos na ávida expectativa pelo acontecimento de caráter elevado, digno de tomar o centro da arena-santuário ### A história do teatro localiza na Poética de Aristóteles os elementos que constituem o paradigma para o estabelecimento do Drama Absoluto – conceito este proposto por Peter Szondi. Definindo a tragédia grega como “imitação de uma ação de caráter elevado, completa (...), imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que suscitando ‘terror e piedade’, tem por efeito a purificação dessas emoções” (1987, p. 205), o Estagirita instituiria a tríade Ação/ Imitação/ Catarse como os elementos propulsores do novo gênero artístico que surge por volta do século V a.C.; guardando suas peculiaridades de forma e conteúdo, o Drama Absoluto operaria pela mesma tríade ### “Vocês vieram assistir teatro? Vieram no lugar errado!” é a sentença disparada pelo ciclope digital; o gigante mítico de um olho só e de poderes premonitórios de outrora, se apresenta agora em estatura baixa e portando um terceiro olho na palma da mão direita; este terceiro olho, que parece nos vigiar, traz o vaticínio: a caverna cibernética é o lugar de se RE[ATAR] a vida, reassumir o protagonismo ditirâmbico, potencializar ao máximo o RE[ATOR] que existe em cada um dos presentes. ### Órfãos dos grandes mythos que somos, estamos fadados a lidar com a Ação em nível micro e suas subseqüentes fragmentações, comprometendo a unidade de lugar e de tempo da mimesis e, por conseguinte, a estruturação e desenvolvimento de uma ação catártica nos moldes aristotélicos. É a sintomática crise do drama instalada no Teatro Contemporâneo. ### Após o vaticínio do ciclope digital é uma questão de tempo para que minha relação com a caverna cibernética se redimensione, se atualize e potencialize um novo contorno: a sinestesia sonora e imagética. As sombras melódicas, barulhentas e multicoloridas que não cessam de atravessar e invadir o espaço me embala agora numa viagem poética cujo centro está voltado para meu próprio ser; trata-se de uma auto poiesis digna de rivalizar com os pseudos protagonistas da rádio novela digital que ali se delineia aos farrapos. Finalmente assumimos que estamos em terras dionisíacas e como bons devotos elevamos nossos copos – ou latinhas – em honra a deidade. Reconhecendo-nos como partícipes do acontecimento um novo imperativo ganha forma e força: importa a troca, o contato e o encontro humano. Tudo o que se apresenta como possível obstáculo ao imperativo soa estranho e afronta a estabilidade, qualidade e fluidez do ato, pois passo a realizar minha própria linha de ação com a parceira que se encontra ao meu lado; nossa troca e contato humano – regada a terceira ou quarta cerveja estupidamente gelada – atualiza e dá sentido àquele momento único que se abre somente entre nós dois; o jogo se inverte, pois se antes o equívoco ou inadequação se encontrava na expectativa de acompanhar a história que viria a ser apresentada de modo linear ### condição do espectador por excelência, que aguarda o desenvolvimento do drama em toda sua extensão, até o desenlace ###, agora encontrando a chave adequada para me relacionar com a caverna cibernética, são as irrupções dos pseudos protagonistas da rádio novela digital que soam inapropriadas, pois interrompem o contato com minha parceira de ato. Ocorre o entrecruzamento entre os farrapos do ficcional e a gestação de um autêntico Happening ### Movimento vanguardista marcadamente dos anos sessenta do século XX, cujos princípios de criação se pautavam pelo acaso, o imprevisto, o aleatório e a renuncia a todo elemento mimético fixado num texto; as obras deveriam se estabelecer a partir do frescor inusitado e, por vezes, altamente arriscado dos acontecimentos. Curioso notar como a estruturação da Performance “Em caso de emergência quebre o vidro” pretende instalar essa temperatura e ambientação, própria do happening, na sala de apresentação; quando finalmente isso se instaura e ganha consistência entre os presentes, os resquícios da forma dramática que “costuram” a performance se chocam com estes elementos altamente imprevisíveis e, por isso mesmo, organicamente gestados como happenings. ### Mas a essa altura, o verme da minha consciência já havia corroído o que me restava de textocentrismo e, então, não hesitei em abandonar por completo os farrapos daquela história de amor e desilusão que insistia para ainda ser notada aos sobressaltos. Tudo o que restava era seguir a linha orgânica do meu happening. Tudo o que nos resta é tomar uma cerveja. ### Mesmo evidenciado as sucessivas crises da forma dramática na atualidade, essa espécie da Frankenstein chamado “Drama”, consegue encontrar fissuras e por elas se alojar, instalando-se como uma espécie de parasita a espreita do bote derradeiro. Note-se ainda que a Performance na acepção do alemão Hans-Thies Lehamann, sendo o terceiro elemento situado entre o Drama e o Teatro, opera com maior destreza nos momentos de fuga das convenções estabelecidas pela tradição teatral. Logo, a dramaturgia de Denio Maués só foi relegada a segundo plano, na minha recepção, na medida em que irrompeu reivindicando status de ação central na Performance. Certamente, a dramaturgia opera com maior potência em sua versão de rádio novela digital, dada a acompanhar na instalação localizada no hall de entrada do Estúdio Reator.     
Exógena
Tudo que nos resta é tomar uma cerveja. Embora altamente aprazível pelo ato de degustar, a constatação não deixa de ser perturbadora se levado em consideração o índice de reclusão colocado na premissa. O que temos feito para enfrentar a situação adversa, humilhante e ultrajante para os artistas de teatro na cidade de Belém do Pará ao longo dos últimos dezesseis anos? Há quanto tempo não nos reconhecemos como uma categoria teatral?   
Houve um tempo – suspeito eu, em minha ligeira inocência romântica – em que bebíamos cerveja para potencializar atos criativos, subversivos e fundamentalmente poéticos; ato agregador e altamente sociável, beber cerveja colocava no mesmo patamar artistas de teatro de diferentes gerações, classes sociais e níveis de formação. Em volta da mesa do bar minha iniciação a “loura gelada” me colocou lado a lado com artistas que admirava por seu potencial criador, mas, sobretudo pelo posicionamento político e de enfrentamento que o teatro em Belém sempre teve – uma rápida visita a história recente do teatro em Belém, atesta o vigor e o engajamento político empreendido pelos artistas que criaram os grupos Norte Teatro Escola do Pará e o Cena Aberta, pra citar apenas dois dos mais importantes.
Mas fico com a impressão, de que hoje, o nível de enfrentamento político ficou reduzido à sobrevivência de espaços alternativos que foram abertos na cidade. Essa política dos artistas de teatro de territorialização de novas salas de apresentações injetou, certamente, animo novo aos produtores locais, pois os teatros públicos oficiais encontram-se de portas fechadas – ou completamente sucateados, vide o caso do Teatro Experimental Waldemar Henrique – para os artistas da terra há pelo menos uma década e meia. O marco desse processo de territorialização se estabeleceu na virada do século numa queda de braço entre a categoria teatral – que na ocasião ainda se agrupava politicamente na moribunda FESAT, para logo em seguida fundar a APLAUSO, associação que, segundo me consta, não vingou por mais de três anos – e o então governador Almir Gabriel, capitaneado por seu fiel escudeiro, Secretário de Cultura Paulo Chaves. O símbolo maior do embate: O Teatro Experimental Waldemar Henrique. O momento crítico: a reinauguração do Teatro Experimental Waldemar Henrique que contou com a presença do Governador Almir Gabriel, do próprio secretário Paulo Chaves, além de um seleto grupo de convidado exceto, é claro, a classe teatral que ficou impedida de entrar na cerimônia que ocorria nas dependências internas do teatro. O fato enfureceu os artistas que protestaram esmurrando portas e janelas do prédio em repúdio ao tamanho desprestígio e desrespeito. A situação foi tão tensa que o governador precisou sair do prédio escoltado pelo batalhão de choque da policia militar, sob intensas vais dos artistas-manifestantes.
A partir do ocorrido a categoria deu as costas para o teatro Waldemar Henrique numa atitude de afrontamento político à gestão de Almir e Paulo Chaves e gradualmente passou a territorializar a cidade com novos espaços. Surgiram, então, na cidade: Teatro Cuíra, A Casa da Atriz, Teatro Porão Puta Merda, Casarão do Boneco, Espaço Atores Contemporâneos, Casa Dirigível, Estúdio Reator, entre outros. Alguns já fecharam as portas e outros lutam bravamente para manter-se de pé, literalmente. Reconheço, admiro e louvo sinceramente o esforço de cada um desses artistas que se mantêm na linha de frente das políticas culturais pra cidade, administrando espaços privados com escassos recursos públicos, mas voltados para o bem comum, dialogando abertamente com a sociedade, problematizando-a e apontando rumos diferentes para vencer o cerco da lógica de mercado capitalista que também assola as artes.
Decorridos, no entanto, alguns anos dessa aventura de territorialização dos espaços na cidade, é necessário refletir e mensurar até que ponto o enfrentamento e resistência de outrora não se transformaram em recolhimento? Empresto o termo de Victor Peixe que intitula “Teatro do Recolhimento” em contraponto ao “Teatro de Resistência”. Segundo Victor – e concordando com ele – vivenciamos um momento em que alguns artistas têm seu próprio espaço de criação, tencionam as linguagens ao máximo possível – ou ao seu bel prazer – com vistas a extrair delas um experimento revigorado, afinado com as tendências pós-dramáticas da contemporaneidade, mas que não conseguem estabelecer-se como voz ou foco de enfrentamento político. O motivo é aparentemente simples: trata-se de esforços separados, isolados, recolhidos ao desejo de continuar fazendo teatro com a liberdade necessária para experimentar o que bem entender e não efetivamente em construir um discurso afinado de resistência a (des)política cultural do estado.
E para não ser injusto, me incluo entre aqueles cujo termo “Teatro do Recolhimento” se adequada perfeitamente e me permito uma auto-citação, a título de exemplo. Embora não possua um espaço alternativo particular, usufruo do Teatro Universitário Claudio Barradas, espaço institucional que abriga minhas experimentações artístico-acadêmicas há pelo menos cinco anos. Nele, tenho total liberdade – e custo “zero” – para propor relações poéticas nos processos criativos que dirijo no grupo de pesquisa do qual faço parte – o GITA – e em todas as minhas demais produções. É cômodo demais contar com este espaço e, inevitavelmente, acabei me recolhendo e me contentando em simplesmente tencionar as relações dentro desta margem de segurança institucional. Mas qual a relação desta minha prática com a cidade? Em que medida o discurso que instituo ali dentro não fica recluso as paredes do teatro sem nunca, ou quase nunca, ultrapassá-las? O raciocínio é valido para todas as demais produções institucionais da Escola de Teatro e Dança da UFPA e penso que já é hora de avaliarmos criticamente se não nos encontramos encastelados neste teatro. E o pior, se não tentamos fazer deste espaço uma espécie de novo Waldemar Henrique – lugar que abrigue todas as produções teatrais da cidade – justamente para tentar minimizar a lacuna deixada pelo próprio estado.
Isso é resistência ou recolhimento?
Reconheço a resistência histórica e heróica de todos os espaços citados aqui, mas precisamos avançar na compreensão e efetivação de práticas coletivas que nos devolvam a identidade de categoria teatral. Do contrário continuaremos isolados e recolhidos aos nossos desejos e aventuras estéticas. Já passou da hora de colocarmos um pouco de ética em nossa insatisfação poética. A mesa do bar pode voltar a potencializando nossos hábitos etílicos canalizando-os para um enfrentamento comum. Assim, tudo que nos resta é tomar uma cerveja. Cabe a cada um de nós saber, no entanto, qual cerveja verter: a do recolhimento ou a da resistência?    
OBS: A Performance “Em caso de emergência, quebre o vidro” me possibilitou refletir sobre um termo instigante que temos discutido ultimamente no projeto TRIBUNA DO CRETINO. No entanto, as considerações apresentadas aqui – na parte intitulada Exógena – não se dirigem exclusivamente ao Estúdio Reator, mas sim ao conjunto de espaços alternativos que mantêm relação semelhante com a cidade inclusive o Teatro Universitário Cláudio Barradas.     
Edson Fernando
28 de Fevereiro de 2016   

FICHA TÉCNICA
PERFORMANCE 
“Em caso de emergência quebre o vidro”
Performer:
Dudu Lobato e Paulí Banhos
Dramaturgia:
Denio Maués
Cenografia / Vídeo / Iluminação:
Nando Lima
Door:
Maurício Franco