segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Sinestesia Pós Dramática – Por Raphael Andrade.

Autor: Raphael Andrade- Ator; Graduando em Licenciatura em Teatro- UFPA.
Olho para meu relógio de pulso são 21h06 min. Ligo o notebook, reflito sobre como começarei a escrever a crítica para a TRIBUNA DO CRETINO. Penso: será que alguém vai ler? O Prof. Edson Fernando vai pedir para eu mudar? que enfadonho! (procurei no Google o sinônimo de chato) O que pretendo indagar? O que o espetáculo me transmitiu? Desisto... Ouço Charles Gounod no You Tube. Sento na cama; abro o programa do World; dedilho sobre o teclado idealizado por Qwerty; começo a pensar no título. Ixi, nada vem em mente... SENSORIAL, Raphael. Relativo a sensório! É isso! Vou começar... está chato? Não ligo! Ligo sim!
Sábado, 26 de Novembro – Em passos largos, com o olhar atento ao meu redor, passo por um túnel de luzes natalinas abaixo das mangueiras suntuosas da Praça da República. Espantosamente não faz calor em Belém. Entre olhares, buzinas de veículos, burburinhos e cheiro de pipoca, caminho ao lugar que será apresentado o espetáculo Cerimônia de Olhares, ICA – Instituto de Ciências da Arte, ao lado do teatro Waldemar Henrique e defronte ao suntuoso Teatro da Paz. Reflito: por qual motivo este é o lugar escolhido, haja vista que, este não é um teatro? Bom, não faz parte do meu metiê.
Adentro o referido local, pego meu ingresso, sento ao lado de desconhecidos, cumprimento-os com boa noite. Espero...
Por que comecei a escrever isto? Ah, claro, porque já vi o espetáculo e sei que o mote do mesmo é: Teatro de percepções! Por este motivo, o prólogo já começa neste intuito. Nos 10 minutos do descer do coletivo até me alocar, quantas percepções minhas retinas, olfato e audição puderam, neste pouco tempo, ficar gravados em minha memória?
SENSORIAL – Se eu não estivesse pensando sobre tudo o que ocorreu antes do ato teatral me indagar com essa palavra destacada acima, tenho convicção, que todas essas ações até chegar ao local do espetáculo passariam despercebidas. Assim como deixamos de perceber, nestes tempos atribulados, o que se passa à nossa volta. Bom, este espetáculo gerou de certa forma, o incremento de minha sensibilidade imagética.
Passaram-se 40 minutos de espera, o diretor do espetáculo, Miguel Santa Brígida, nos cumprimenta e fala brevemente sobre o espetáculo comemorativo dos 25 anos da Companhia de Atores Contemporâneos, da qual é fundador, também cognominado “Teatro do Movimento” – O espetáculo faz uma alusão a fragmentos de peças produzidas nestes referidos anos.
Adentramos o local escuro da encenação, somos no máximo 30 espectadores. O espaço cênico de arena não comporta muitos lugares. Fachos de luzes de lanternas perpassam pelo recinto, apenas sapatos pelo chão negro e um piano compõe a visualidade. Atrás das enormes janelas da grande sala, sombras dos atuantes intensificam nossas expectativas.
Abrem-se as portas, as iluminações compostas apenas de lanternas fazem um bailar de luzes sobre as pernas dos atuantes como se fosse uma dança – Começa uma espécie de agitação expressionista, ao qual me remeteu ao desenvolvimento de dança do teatrólogo Rudolf Laban (1879-1958), ao qual o objetivo principal reside na expressão das emoções baseado em quatro fatores: espaço, peso, tempo e fluxo. Nesta perspectiva, os atores/performers estabelecem com elegância e instintiva gestualidade, um aprazível, enérgico e envolvente jogo dança/teatro, impulsionando, desta forma, uma trajetória de cerimônia de olhares entre o sensorial onírico e a percepção imagético-sonora dos elementos técnicos, da metáfora que nos é apresentada; completado pela sintonia da sonorização (ao vivo ou digitais), gestos, dança, elementos cênicos e a ruptura do textocentrismo ou dramatis personae, características do Teatro pós dramático denominado pelo professor alemão Hans-Thies Lehmann (1944) ao qual tenta reconstruir um diálogo com o espectador:
Esta nova forma teatral não procura suscitar a adesão do espectador, mas provocar sua percepção ou emoção significativa. Os aspectos fragmentários destes textos, ou destas montagens, permeiam uma reescritura cênica que englobam os aspectos textuais, cenográficos e os problemas que são propostos por um jogo não necessariamente psicológico.
Nestes fragmentos de cenas que não têm, ao menos para mim, uma linearidade, permanecem somente as sensações (que me foram intrínsecas): temor; prazer; dor; morte; estupro; confiança; desconfiança; repúdio; loucura, liberdade; nascimento dente outros – Nesta sinestesia, novos olhares são possíveis no teatro contemporâneo. Tenho a sensação que somos parte inerente da encenação, não necessariamente porque os performers falam diretamente com o público, mas sim, por estarmos ligados pelas vivências que nos transmitem esta teatralidade.
Para quem pretende ver Cerimônia de Olhares, sairá com a certeza que o teatro não necessita necessariamente do “drama puro” para passar algo para quem o vê. Pois, este espetáculo é uma espécie de simbiose que singulariza a sua envolvência com a contemporaneidade, anestesiando quem o presencia.
São 22h13 min. Penso nos três períodos de tempo existentes: o tempo passado, o tempo presente, e o tempo futuro. Vem à mente a música Oração ao tempo e, com esta canção, agradeço pelo belo espetáculo e dou votos de mais 7x25 anos de “Teatro do Movimento”.
[...] Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo

[...] Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo

[...] Portanto, peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo, tempo, tempo, tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo, tempo, tempo, tempo

          
          22h26min. Tirem suas percepções sobre o espetáculo.
Continuo com a sensibilidade aflorada.

Ficha Técnica
Atuantes:
Alessandra Pinheiro, Aninha Moraes, Cei Mello, Claudia Messeder, Edilene Rosa, Hudson dos Passos, Jaime Barradas, Marcelo Nunes, Sônia Santos,.
Participações especiais das bailarinas:
Ana Flávia Mendes Sapucahy, Eleonora Leal e Waldete Brito.
Pianista Convidada:
Mauri Ohana.
Equipe Técnica:
Criação roteiro:
Miguel Santa Brígida.
Assistente de direção:
Jaime Barradas e Patrícia Passos
Pesquisa musical:
Rogers Paes, Miguel Santa Brígida e Marcio Souza.
Consultoria Artística e Cenografia
Aníbal Pacha.
Figurinos
 Direção e Elenco.
Desenhos de Luz e operação
Direção e Elenco.
Operador de Som
Marcio Souza
Costureira
Nadja Melo
Foto Cartaz
Guy Veloso
Programação visual
Raphael Andrade
Apoio Técnico e afetivo
Vitor Rezende, Lenni Torres e Vivi Torres.
Produção e divulgação
Patrícia Passos.
Direção Geral

Miguel Santa Brígida.

domingo, 6 de novembro de 2016

Quem quer ir ao Velório? – Por Geane Oliveira

Geane Oliveira: Atriz, Graduada em Licenciatura em Teatro – UFPA; Participante do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.

Minha avó dizia mais ou menos assim: “Morreu é bom enterrar logo, antes que comesse a feder”.

Era apenas uma pequena caminhada, mas a luz da lamparina, o cheiro de goiaba com mato e o som das gotas d’água que caiam das folhas recém molhadas pela chuva tornaram aquele pequeno momento num resgate das memórias do pomar da minha infância. De dentro dele eu enxergava as janelas da casa, e nelas uma velha –empregada mais antiga da casa – contava a estória de dona Pereira. Confesso que medo não dava para sentir, mas a cada aparição, minha memória se aproximava  da vivência na casa da minha avó, e quando aquele texto fugia cheguei na porta dos fundos, ainda envolvida pelo cheiro e sons do pomar. Lá havia uma boneca de pano quase igual a que ganhei da vovó, a diferença era que essa estava sendo manipulada por uma menina de aparência sombria. As duas descem as escadas e somem no meio das mangueiras, caneleira e jambeiro.

Minha avó dizia mais ou menos assim: “Velório tem que ter café e bolacha”.

De tanto me encantar com o pomar havia esquecido que minha caminhada estava direcionada ao velório de dona Pereira, uma jovem senhora de quem tanto ouvi falar. Quando passo a cerca encontro um ser contorcido que geme enquanto guia-me ao local onde está o tão esperado corpo a ser velado. Chego ao pátio do velório e o ser contorcido se embrenha na mesma mata em que a garotinha da boneca, virou pássaro creio eu, e enquanto ele desaparecia no meio da folhagem uma tosse interrompeu o burburinho. Algo se contorcendo de dor e agonia, aguardando os últimos suspiros. Os gemidos são crescentes e por não mais suportar aquela dor o ser entra na mata levando toda sua agonia. A luz das velas revela uma garotinha que pela primeira vez aparece. É tão jovem que só consegue se alimentar dos conselhos que sua mãe lhe dá, as duas estão diante do corpo de dona Pereira, não há lágrimas , só palavras de velório, e quando essa conversa termina era hora de uma pausa para lanchar. Quem quer? Eu quis, e comi vários bocados. Afinal vovó sempre disse que o melhor do velório é a comida. Estava até bom, e mais uma vez esqueci que estava ali para prestar homenagens à dona Pereira. Porém os moradores da casa e responsáveis pelo velório lembraram-me que precisávamos seguir com o ritual, e assim começaram apressar o povo,  pois o corpo já estava em decomposição.

Minha avó dizia mais ou menos assim: “No carregar do corpo ao cemitério precisamos cantar, então: cante, cante,cante...”

Seguimos com o ritual, sem esquecer de  cantar, em um clima melancólico seguimos viagem... cantemos, cantemos, cantemos! De repente bate uma sensação estranha, fiquei ali tentando lembrar em que momento ela realmente esteve comigo, pois seja em forma de velha, garotinha ou pássaro ela sempre desapareceu na mata e agora não seria diferente. Mais uma vez eu estava lhe perdendo de vista, lentamente os cheiros, sons e sabores do velório foram se perdendo. O enterro se aproxima, cantemos, cantemos, cantemos! Tento voltar ao pomar na esperança de encontrá-la, mas de nada adianta, pois ela se foi. Aceito esse destino, e aos treze malditos que ali comeram e beberam resta cantar, cantar, cantar, carregar, cantar, cantar, cantar, cantar, cantar...

Resta-nos seguir e aceitar o conselho da vovó: “Quando chegamos aqui tudo já estava tramado, não existe esse negócio de começo, meio e fim”.
Geane Oliveira

06 de Novembro de 2016

FICHA TÉCNICA
Adriana Cruz, Andréa Rocha, Aníbal Pacha, Cincinato Marques Jr, Cristina Costa, Fafá Sobrinho, Lucas Alberto, Nanan Falcão, Tereza Ojú, Thiago Ferradaes, Paulo Ricardo Nascimento, Vandiléa Foro.
Realização:
 In Bust Teatro com Bonecos,
Produtores Criativos
e Coletivo Casarão do Boneco.

Sonhos (?) de uma noite com Pereira – Por Edson Fernando

Edson Fernando: Diretor, Ator e Professor de Teatro da UFPA. Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.
* * * S1 * * *
Quando se têm onze anos de idade, a imaginação fértil de uma criança/adolescente facilmente se deixa levar, a ponto de enxergar uma mão peluda e ameaçadora por trás de uma árvore no escuro de uma noite de verão, quando em verdade tudo não passa de outro tronco de árvore seco, tombado natural e estrategicamente, por trás da frondosa mangueira erguida bem em frente à casa de minha avó. Naquele verão de 1987 quando, então, apaguei as onze velinhas de aniversário – emburrado é claro, pois sempre odiei meu aniversário – no dia sete, do sétimo mês do ano, passei a ter o status de “hominho” junto à família, o que me conferiu o direito de dormir na rede no lado de fora da casa, mais precisamente no largo pátio da casa de madeira da Vó Dudu. Hoje compreendo que o que parecia ser um privilégio de quem está dando os primeiros passos para entrar na fase da adolescência, era na verdade uma necessidade, por conta da superlotação da casa, repleta de tias, tios, primas e primos de primeiro, segundo e até terceiro grau que se amontoavam naquela residência para curtir as férias na bucólica ilha de Mosqueiro. E lá estava eu, todo faceiro por conseguir lugar de destaque pra dormir naquela casa, acompanhado apenas de um pequeno travesseiro, um lençol e mais dois primos adultos nas redes ao lado. O pátio é aberto e circundado apenas por um para-peito de madeira feito de ripas e pernamancas. Minha rede ficou na extremidade esquerda, bem de frente pra pista da oitava rua da bucólica. Do outro lado da rua, bastante mata virgem e apenas um casebre de madeira com uma lâmpada incandescente acesa bem fraquinha, residência da misteriosa Dona Maroca – comadre de vovó. Assim que deitei e comecei os primeiros embalos na rede que rangia fininho, contemplei o céu estrelado e a lua de quarto crescente que permitia iluminar aquela região de mata à frente apenas o suficiente para excitar minha imaginação de “hominho” medroso. E num relance rápido para conferir a paisagem, meu olhar congela na suposta mão peluda por trás da mangueira. Em pequeno sobressalto, ponho-me sentado na rede para espiar melhor a visão que me aterroriza. O ângulo em que me encontro é perfeito para ocultar todo o corpo do gigante bicho peludo que, pavorosamente, deixa apenas uma mão a mostra, indicando que aguarda o momento certo para me atacar. O restante da casa está em silêncio e na escuridão, os primos ao lado roncam fragorosamente. Estou só diante da criatura que poderá me atacar a qualquer momento da noite. Sendo o único recurso que me resta, cubro-me da cabeça aos pés e deposito no companheiro lençol a esperança de que se transforme numa cápsula protetora intransponível. Na iminência do ataque, resolvo seguir em vigília noite afora, tentando conter o pânico que cresce a cada sussurro estranho vindo da rua, do quintal, da mata... Luto contra a vontade de dormir procurando me manter alerta e apostos para retalhar um súbito ataque. Ouço o ranger da janela do casebre à frente. Agrupo toda coragem que meu coração de “hominho” possui, descubro sutilmente apenas os olhos e espio o que se passa do outro lado da rua: a velha Maroca debruçada carcundamente na janela, delicia-se dando longos tragos no seu cachimbo. O cheiro de tabaco atravessa a rua...     
* * * S2 * * *
O céu vermelho, semi-nublado, daquela noite pós dia de finados é o prenuncio de chuva. Hesito em sair de casa nestas condições, mas há coisas na vida, ou na morte, que são inadiáveis. A pequena sombrinha roxa será minha arma para combater o tempo desfavorável. Á uma quadra dos portões da misteriosa residência o inevitável ocorre: a chuva se apresenta como companheira indesejada, mas insistente. É de lá que avisto a porteira enlutada atravessar a rua e adentrar os portões. Com os generosos pingos de chuva chocando-se contra a sombrinha e apreensivo por suspeitar que o fúnebre acontecimento tenha sido cancelado, suspenso ou transferido de lugar, dirijo-me em sua direção e me resguardo na pequena marquise de loja quase em frente à casa que agora parece mal assombrada. Sou confortado por ver que outras almas encarnadas também se fazem presentes para testemunhar a passagem derradeira da centenária Pereira. É o momento de orações profanas, sortilégios inconseqüentes, gargalhadas e piadinhas infames... Tudo isso, talvez, para descontrair e amenizar o clima tenso, decorrente da notícia funesta. Os minutos avançam, a expectativa pelo último adeus cresce. Sem que eu perceba os fios da vida estão sendo tramados bem a minha frente. É o momento de constatar a fragilidade da vida humana, a fraqueza do homem diante das forças sobrenaturais desconhecidas; o homem reduzido a sua porção de barro e sopro divino; a dimensão títere da humanidade me provocando a pensar que tudo pode estar por um fio. Então, urge aproveitar enquanto ainda há tempo, ou fio de vida. O silêncio será agora o companheiro fiel que me guiará nesta pequena jornada. Ela abre o portão e nos convida pra entrar.
* * * S3 * * *
Um homem vestido de roupa preta (calça e camisa) barba por fazer, aparenta ser o super-homem. Expressão cabisbaixa e decadente. Parece viver no submundo do crime. Repentinamente começa a perseguir um ladrão perigoso. Começam a lutar. Evidentemente Super-homem esta dando uma surra no ladrão; até que vão parar numa estação do metrô. Super-homem é atropelado por um vagão. Ele cai atordoado, mas levanta-se lentamente. A sua frente o ladrão. Reiniciam a luta, até que outro vagão do metrô o atropela novamente. Mais uma vez cai atordoado, levanta-se, e reinicia a luta com o ladrão. E sucessivas vezes essa cena se repete. Então, após vários atropelamentos, termina as estações do metrô. Super-homem reinicia a luta. O ladrão apanha muito, até conseguir se esconder nos becos escuros da cidade. Super-homem desaparece. O ladrão aliviado precisa fugir. Resolve vestir-se completamente de preto. Abre a porta do guarda-roupa, mas quando vai trocar de camisa, de dentro do guarda roupa sai uma velha de cabelos brancos, toda vestida de preto. Ela se aproxima e com seu hálito de tabaco sussurra em seu ouvido: “AI DORAMANTE. FELIZ DIA DE DORA!!!”
* * * S4 * * *
Sigo pelo caminho soturno da casa abandonada. Cheiro de terra molhada. Mato molhado. Insetos que picam. Vozes. As janelas laterais estão abertas. O desgaste das paredes, a pintura surrada e encardida revelando um estado de pobreza, abandono, solidão. A velha de cabeça branca, sempre a velha de cabeça branca estabelecendo conexões com as paisagens de uma Mosqueiro de outrora. As janelas compridas de madeira, as portas gigantes de madeira bruta, o telhado de telhas de barro, as senhoras sentadas nos batentes das portas em atividades domésticas em estado de elevação. O amarelo das lâmpadas incandescentes de antigamente recobria tudo isso com uma atmosfera de mistério e suspense. Os terrenos eram grandes, os quintais se perdiam de vista, as casas ficavam distantes uma das outras e entre elas o espaço vazio preenchido pela escuridão ou semi escuridão, o coaxar dos sapos, a estridula dos grilos. A velha de cabeça branca passeando pelos corredores escuros, resmungando pequenas sabedorias populares que minha mente não alcança e não compreende, tanto hoje quanto ontem. Visitar o quintal a noite nunca era tarefa agradável, mas quase sempre era necessária, uma imposição biológica de minha bexiga. Menino educado pela mãe para não sair mijando em qualquer cantinho escondido, eu estava fadado a visitar a casinha no fundo do quintal todas as noites. O pinico guardado debaixo da cama era privilégio das meninas. Pra piorar a situação, meu intestino sempre foi muito dedicado e obreiro me obrigando, algumas vezes, a comparecer mais de uma vez na casinha feita de tijolo cru e piso de cimento. Nestes casos era necessário ainda pegar água do poço para despachar a escatologia deixada na privada – a descarga de fiozinho era apenas artigo de decoração. Caminhava cerca de 50 metros da porta da cozinha até o poço por uma trilha de tábuas soltas; do poço até a casinha eram mais 30 metros, pelo menos. A iluminação das casas distantes eram as únicas fontes de luz que amenizavam a escuridão. Ter a companhia de alguém neste trajeto já significava um alento e tanto. Caminhar em grupo, então, era o suficiente pra desbravar a pequena floresta do quintal. Cada passo dado no terreno irregular daquela pequena floresta particular me deixava hesitante, curioso, apreensivo, vacilante... Tocos, formigas, galhos de árvore, pedras, mosquitos, flores, plantas, cheiro de frutas... A velha de cabeça branca acompanha a jornada passeando de janela em janela... 

* * * S5 * * *
Os corredores da escola estão vazios. Passeio lentamente observando aquele lugar que, por anos, me abrigou e permitiu minhas primeiras descobertas de adolescente: a primeira paixão tórrida que me consumiu dois anos e meio – da sexta até a oitava série – até o ato de extrema coragem que me impulsionou a me aproximar e trocar as primeiras e fúteis palavras com ela, bem próximo da escada ao lado da sala da direção; o primeiro beijo, ocorrido na sala A02, decorrente da famosa brincadeira do BNBD – Beijo na Boca Demorado; a sensação de liberdade decorrente da primeira vez que matei aula pra ir até a Praça Batista Campos, pra ficar sentado de bobeira nas pedras à beira dos laguinhos, na companhia do Chandandan e do Sidney Cepacol, amigos com quem fazia uma vaquinha para adquirir um pitoresco biscoito que batizáramos de bolachão – dado o tamanho e consistência da massa. O silêncio e o vazio que agora dominam o lugar deixam estas lembranças saudosamente distantes. Os passos me levam pelos corredores soturnos... Tudo vai ficando estranhamente sinistro... O enorme e fumegante caldeirão preto a minha frente me terrifica... Em súbito soslaio avisto a velha de cabeça branca observando-me pela vidraça da janela do andar de cima... Corro desesperadamente sem sair do lugar...       
* * * S6 * * *
Adotei o hábito de não olhar na cara do morto. Quando estou num velório, mantenho distância segura que me permita não cruzar distraidamente com o rosto fúnebre do defunto. Duas coisas que me partem o coração num velório: olhar o morto de perto, ou de longe, e os cantos de despedida. Por isso evito olhar a face mortuária de quem já “bateu as botas”. Mas desta vez foi inevitável. Inebriado com o uivo esquisito da criatura que se metamorfoseou em floresta, me distraio o suficiente pra ser surpreendido com o cadáver de dona Pereira em cima da mesa, bem na minha frente. A imagem me paralisa por instantes. Mas a estranha senhora deitada em repouso eterno, de algum modo, me cativa (aterroriza) pela última vez (?). Permito-me velá-la de pertinho. Os parentes mais próximos de Dona Pereira estão resignados e demonstram todo seu afeto beijando o “cabelinho dela”, o “pezinho dela”, a “barriguinha dela”, o “bracinho dela”... Compartilho também todo meu apreço beijando principalmente o “cabelinho dela”. É quando a segunda coisa que me corta o coração num velório começa: as Incelências. Hora da pobre Dona Pereira partir em direção ao que lhe cabe neste latifúndio: uma cova funda. Na ausência do caixão – luxo descabido para a alma desta senhora elevada – sua surrada rede de dormir será seu último transporte até o cemitério. O cortejo fúnebre parte em meio à floresta escura... Uma incelençaaaa... Uma incelençaaaa... Uma Incelençaaaaa...
* * * S7 * * *
Ela abre o portão e segue a passos largos pela calçada. Sigo no seu encalço. A velha da cabeça branca vai bem à frente caminhando decididamente sem olhar pra trás. Sigo mirando a cabeça alva da velha na esperança de que ela me guie até as portas do cemitério. É necessário despachar o corpo para que o descanso eterno se efetive. Aperto o passo, mas a sensação é de não sair do lugar... A velha de cabeça branca vai se distanciando... No desespero para alcançá-la, os passos se transformam em corrida... A velha de cabeça branca alcança a esquina e dobra à esquerda... Aumento o ritmo da corrida até me deparar com a esquina deserta... Pra onde ir? O que fazer? Na tentativa desesperada de evitar o sortilégio que me fora repassado, regresso até a casa mal assombrada. O escuro, o silêncio e os portões fechados me recepcionam. Sempre suspeitei que algum dia Dona Pereira acertaria as contas em virtude daquela cantiga de troça dos meus tempos de criança: “Dona Pereira / subiu na bananeira / Comeu banana podre / E morreu de caganeira”. Nesta noite estranha, meu lençol será meu companheiro fiel, a fortaleza intransponível que me protegerá dois uivos desconhecidos. Preciso acordar!?

FICHA TÉCNICA
Adriana Cruz, Andréa Rocha, Anibal Pacha, Cincinato Marques Jr, Cristina Costa, Fafá Sobrinho, Lucas Alberto, Nanan Falcão, Tereza Ojú, Thiago Ferradaes, Paulo Ricardo Nascimento, Vandiléa Foro.
Realização:
 In Bust Teatro com Bonecos,
Produtores Criativos

e Coletivo Casarão do Boneco.

O silêncio amargo da mafalala-amazônica de minha terra – Por Raphael Andrade

Raphael Andrade: Ator: Graduando de Licenciatura em Teatro- UFPA

(...) Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.
Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Nestes versos do poeta e ensaísta José Craveirinha (1922 – 2003), reverbera a beleza e importância de “gritar” sobre belezas e mazelas de sua terra natalícia Mafalala – bairro periférico de Maputo ou “cidade do carniço,” análogo a vivência da população ribeirinha, que padecia pela precariedade do poderio político. Porém, por intermédio dos fazedores artísticos da terra, fizeram desta cidade expoente na literatura, música, teatro, modificando a realidade transgressora deste povoado. Nesta perspectiva, podemos verificar que o teatro e ARTE em geral, têm esse poder transformador que necessitamos para mudar (ou tentar) as “mafalalas” de nossa terra. Algo que, a meu ver, ficou explícito no espetáculo do Grupo de Teatro Universitário (GTU – Noite) ao qual estreou, na primeira semana de Novembro, o espetáculo Terra Preta que narra histórias entrecortadas de uma população ribeirinha marcada por mitos, lendas, politicagem e memórias de uma cidade amazônica.
Ao adentrarmos no teatro experimental Cláudio Barradas, nos deparamos com uma bela visualidade de uma “esfinge amazônica” silenciosa com suas folhagens absortas em rostos, corpos e cores dos (das) principiantes atuantes. Após os espectadores estarem acomodados no plano palco-corredor, os atores crivam pela sonoridade amazônida nossas percepções reflexivas. Estabelecendo, desta forma, uma reflexão sobre a população tradicional identificada como ribeirinha: falar de nossa terra/mafalala/amazônica, o teatro desta cidade precisa (também) deste enredo silenciado por fazedores de teatro. Contudo, há de se ter cuidado com a proposta estilística eleita para abordar este assunto ao qual descreverei, por minhas concepções, a seguir.
O teatro contemporâneo não deve ser classificado com apenas um gênero teatral, haja vista que, hoje, há traços dos gêneros (épico, lírico, dramático) presentes na dramaturgia – mas, nesta concepção, não se deve tê-los como uma “bengala” na trama – criando, desta forma, uma não-metalinguagem. Sobretudo por misturar esses referidos gêneros em pequenas cenas entrecortadas que não têm uma linha de raciocínio coeso. Claro que se pode ter “volta ao tempo” ou deixar uma cena implícita, por não tratar-se de um “teatro aristotélico”. Mas é necessário que esses fragmentos não prejudiquem a encenação, tornando-a sem um mote central. Sobretudo por não tratar-se de um teatro pós dramático (quebra do drama) intitulado por Hans-Thies Lehmann (1944), ao qual a encenação é entrecortada por cenas diferenciadas que não têm como objetivo um efeito lógico ou auto-explicativo. Mas sim, um teatro de percepções.
O enredo mostra-nos memórias narradas por "Seu Manel" e narradores soltos no desenrolar das emaranhadas situações ribeirinhas sem coesão – mitos, lendas, indignações contra o poderio político (uso de comédia para quê?), violência sexual e exploração (fraca elaboração do tema), lembranças da infância, escalpelamento e assim por diante, por meio de uma mimese corpórea que beira o burlesco – burlesco este, que se torna pífio na maior parte dos atuantes. Por que fazer deste povoado algo que beira a canastrice? Canastrice presente em gestos largos, gritos e sexualização das personas (efeito tosco, pífio e previsível que temos deste modo de vida ribeirinha – “cabocagem”). Seria para a encenação não cair no marasmo? Para criar uma comédia desnecessária na temática abordada? Ou por terem essa ideia burlesca deste povoado? Outra falha comum é o problema na dicção dos jovens atuantes. Falha peculiar da direção\preparador de elenco (voz e corporal). Apesar de saber quão difícil dirigir um grupo de pessoas que nunca fizeram teatro, estes são pontos que necessitam de zelo.
Para embaraçar mais está conclusão não coesa, a trama segue por mostrar-nos o drama das mulheres escalpeladas sem uma linha contínua na encenação (como referida acima e contundente em todo o espetáculo). Porém, uma das cenas mais fortes e belas do espetáculo, revelando a amargura do arrancamento brusco do escalpo humano, comumente por erro de donos de embarcações por intermédio da boa interpretação da atriz que começa o espetáculo e narra à história. Infelizmente, a ação segue por culpar a plateia pela sua fatalidade. Se a ideia era criar comoção por parte dos espectadores, para mim, teve o efeito inverso.
Dentre erros e acertos, a lenda folclórica brasileira “Iara” foi outro ponto alto do espetáculo (seguidos pela ótima iluminação e boa sonorização), desviando do previsível que já está intrínseco no imaginário popular – com a bela música de Adriana Calcanhoto (1965) “Uma Iara”, e o texto “Uma perigosa Yara” de Clarice Lispector (1920-1977) esta lenda, dentre outras, representa para nós (sobretudo para os ribeirinhos) desenvolver uma relação mais transcendental e harmoniosa com o cosmos – encontrando respostas (ou não) na subsistência.
Nesta perspectiva, Terra Preta capota no amargo erro de querer mostrar muitas histórias entrecortadas deste povoado, deixando-nos sem uma conclusão contundente do tema que se pretende abordar. Contudo, são pontos a serem revistos para outra temporada, haja vista que, há temas de suma importância a serem abordados e que necessitam ser vistos pelo povo ribeirinho ao qual o trabalho foi idealizado. Tentando, desta maneira, dar voz ao silêncio amargo de (suas) nossas terras – ao qual necessita ser adubada com NOSSA CULTURA. Mas antes, necessita ser fertilizada e regenerada.
Raphael Andrade

06 de Novembro de 2016

FICHA TÉCNICA
Elenco:

Hitalo Freitas, Jessica Ribeiro, Jeann Carlos, John Seychelles, Yandra Cruz, Raissa Gama, Jorginho Morais, Joed Caldas, Jhonata Scerni, Marina Moreira, Elisa Santos, Rose Mendes, Clene Lisboa, Stephanne Mergalho, Fabi Santos, Lucas Serejo, Oth Souza, Rafael França, Ivany Palheta

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O que querem as Zecas? – Por Paula Barros

Paula Barros, Graduanda de Licenciatura Plena em Teatro, Bolsista PIBEX 2016 do Projeto de extensão Tribuna do Cretino.
Iniciamos a semana na Escola de Teatro e Dança da UFPA com o VIII Seminário de Pesquisa em Teatro com o tema: Teatro na escola como eu pratico?. O evento contou com dois GTs voltados a experiências pedagógicas com o teatro seja no espaço acadêmico ou fora dele e o intuito era de compartilhar, trocar como diria a Professora Wlad Lima. Uma semana de diálogo e total interação entre discentes, docentes, artistas e colegas de trabalho.
Qual o motivo de dizer isso? Havia na programação dois espetáculos a serem apresentados, mas o que me interessa dialogar é a Zeca de uma cesta só, pois se tratando de Teatro na escola como eu pratico?, penso que vale ressaltar que o espetáculo na primeira temporada se apresentava como GTU – Grupo de Teatro Universitário e agora são convidados e se apresentam como Coletivo Zecas de Teatro, ou seja, comparo eles como filhos, assim que crescem tomam autonomia e seguem sua vida, constroem sua família e vão viver nas suas casas. Assim é hoje o Coletivo Zecas: como alunos da Escola/Universidade aprenderam, absolveram o que podiam, em parcerias artísticas, escolheram sua família, encenam uma dramaturgia de escrita própria a partir do ponto de sua vivência nos espaços da academia e da vida em sociedade e, dessa maneira, constroem seu caminho e hoje tem sua casa o Centro Cultural Casa da Zeca, localizado no centro comercial de Belém.
Então, pensando na dialética e o tema do Seminário e considerando o Coletivo Zecas como um grupo independente e maduro na vida artística, começo a questionar a escolha de um posicionamento partidário dentro do espetáculo Zeca de uma cesta só. A montagem narra a vida de uma mulher (Zeca) vinda do interior para estudar e morar em casa de família na cidade de Belém. Engravida ainda na adolescência em decorrência de um estupro e, sem perspectivas, segue a vida morando na “baixada” belenense. Sobrevivendo como empregada doméstica, ela subestima a própria vida, encontrando de alguma maneira meios para fazer da tristeza e a falta de oportunidade um modo feliz de viver, ou como diria o dito popular: “se tem um limão, faça uma limonada”.
A montagem através de intervenções de mídia (slide) e narradores/atores a partir da vida da Zeca reflete e questiona a atual conjuntura social e política da entrega de cestas básicas. Logo, ao ver a Zeca, achava que a proposta era refletirmos sobre nossa conjuntura social, política e econômica, achava que questionar sobre esses temas dentro do sistema capitalista que nos encontramos seria o eixo central do espetáculo.
Mas é dentro dessa dimensão sócio-política que acredito que a montagem se coloca, que questiono e indago, o porquê de nessa temporada em um dos momentos de aparente descontração na distribuição de bebidas e festa de aparelhagem, um dos atores menciona o nome e número do seu candidato dessas eleições a prefeitura de Belém, e logo em vésperas de eleições de segundo turno, tomando partido e fazendo levantamento de bandeiras? A intenção era nos fazer refletir sobre o cenário político e social atual?.
Como eleitora me sentir completamente lesada, primeiramente porque é angustiante que as propostas dos candidatos sejam sempre receitas de bolo – prometem saneamento, creches, escolas, saúde, etc. E quando chega a altura de um segundo turno a estratégia é de derrubar o outro e os debates ficam nas trocas de farpas.
Segundo, lembro do tema do seminário – Teatro na escola como eu pratico?. Havia alunos de uma escola convidados a assistir o espetáculo, não sei dizer de onde, mas estavam ali sentados assistindo, e como educadora me indago até mesmo sobre o que é teatro? Qual a dimensão desse teatro? E sempre achei que era questionar, refletir, significar através de uma linguagem e de uma estética, mas esqueci que como educadora sou formadora de opinião. Então, até que ponto devo ser imparcial seja dentro de uma sala de aula, na encenação de um espetáculo, na própria construção seja lá qual for a obra artística? Então, resolvo escrever e me contamino pelo que diz Patrick Pessoa sobre a arte da crítica que: “nenhum realizador tem controle total da reverberação de sua obra ou da infinidade de possíveis camadas que ela pode ter”. E assim concluo a partir do espetáculo Zeca que o levantamento de bandeiras é um sintoma da “democracia” atual no mundo e o teatro não está alheio a isso.
E me revelando totalmente avessa a esse modo de praticar o teatro e numa tentativa angustiante e frustrada do voto nulo fazer alguma diferença nessas eleições resolvi não ser estratégica, não joguei o xadrez da política capitalista, não fui influenciada muito menos influenciadora da minha tentativa isolada de fazer diferente.
 Por tudo isso, ainda que conclusivo seja meu raciocínio a respeito do espetáculo Zeca de uma cesta só, continuo a questionar, só que dessa vez o Coletivo Zecas: qual Teatro que vocês praticam? Ou melhor, o que é Teatro para vocês?.
Paula Barros
02 de Novembro de 2016

FICHA TÉCNICA:
Direção: 
Gisele Guedes e Paulo César Jr.
Encenação: 
Léo Ferreira.
Dramaturgia:
Amanda Carneiro, Rhuan Pablo Pina, Léo Ferreira e Rodrigo Pimentel. 
Concepção Sonora: 
Léo Ferreira.
Figurinos: 
Carolina Monteiro, Assucena Pereira e Mayra Saldanha.
Maquiagem: 
Selma Salvador e Edson Duarte.
Produção: 
Rafaelle Siqueira, Thamires Costa, Miller Alcantara e Brenda Lima.
Assessoria de Comunicação: 
Jairo Figueiró.
Cenografia: 
Cláudio Bastos.
Supervisão: 
Wlad Lima, Olinda Charone e Paulo de Tarso.
Iluminação:
Enoque Paulino
Operação de Áudio: 
Lorrana Souza
Elenco:

Assucena Pereira, Brenda Lima, Carolina Monteiro, Edson Duarte, Felipe Almeida, Jairo Figueiró, Mayra Saldanha, Miller Alcântara, Paulo Cézar Jr, Rafaelle Siqueira, Selma Salvador.