sexta-feira, 9 de junho de 2017

Eu vi um dragão – Por Marton Maués



Montagem Teatral: Santo Anjo do Senhor / Cia Cínica de Cênicos
Livremente inspirado na obra de Caio Fernando Abreu, Os Dragões Não Conhecem o Paraíso
Autor da Crítica: Marton Maués, Diretor dos Palhaços Trovadores.

Eu preciso falar de dragões.
Sei que muita gente não acredita na existência deles. Mas eu já tive um dragão morando comigo. Mentira. A verdade é que eu tenho um dragão morando comigo. Muita gente tem, alguns nem percebem porque não conseguem ver o que é invisível. Vidas pequenas. Dragões são invisíveis, mas podemos senti-los, principalmente pelo cheiro. Eles cheiram a alecrim e hortelã. Mas as crianças podem vê-los. Quando criança eu via muitos dragões. Eu queria rezar, mas não sabia a oração do Anjo da Guarda e me agarrava aos dragões, que me protegiam de tudo e de todos.
“... meu zeloso guardador que a ti me confiou a piedade divina...”
O amor é um dragão, queima o peito. Dragão é paixão, queima tudo ao redor. Para se conhecer um dragão é preciso desfiar as fibras do coração, é preciso revisitar o passado adormecido, é preciso cultivar altares, santos, anjos. Acender velas. É preciso velar os mortos, zelar os vivos. Arrumar a casa, comprar flores todos os dias. Ouvir velhas canções, antigos discos arranhados – muita gente não sabe, mas arranhões são marcas típicas de dragões. Arranhões nas paredes, na madeira dos pisos, na pele. Os dragões adoram cravar suas unhas na pele, penetrar derme epiderme carne. Dragões deixam marcas para sempre. Feridas que não saram.
Eu tenho um dragão tatuado no braço igual ao dragão tatuado no braço do menino do rio da canção. Mentira. A verdade é que eu não tenho tatuagem nenhuma no meu corpo. Mas tenho marcas profundas. Às vezes folheio meu álbum de retratos e choro. Canto músicas tristíssimas porque elas me fazem muito bem. Sinto saudades da minha mãe, sinto saudades do meu pai, sinto saudades daquele dragão que foi embora deixando em torno de mim esse forte e insistente cheiro de alecrim. Escondo-me embaixo dos lençóis e choro com medo do bicho. Que bicho? O bicho. Todos temos um bicho dentro de nós: dragões, unicórnios, salamandras, helfos, ninfas. Ficam lá dentro, adormecidos. Um dia acordam, ouvimos músicas, bebemos vinho, fumamos, dançamos. Vamos do inferno ao paraíso e vice-versa.
Os dragões não conhecem o paraíso.  Mas juro que eu vi um dragão. E sei onde ele mora. O dragão mora numa casa no bairro do Reduto, em Belém.
9 de Junho de 2017
FICHA TÉCNICA:
Santo Anjo do Senhor
Livremente inspirado na obra de Caio Fernando Abreu, Os Dragões Não Conhecem o Paraíso
Cia Cínica de Cênicos
Intérprete:
Adriano Furtado
Direção:
Marckson de Moraes

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