sábado, 25 de novembro de 2017

Terra Seca, Gente Seca. E o Rio... – Por Edson Fernando

Montagem teatral: A Casa do Rio, Grupo Gruta de Teatro.
Autor da crítica: Edson Fernando, Ator diretor e coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.

Preamar: Elas já se encontram na casa quando chegamos. Passeiam inquietamente pelos cômodos, como se esperassem por alguém ou por algo muito importante que talvez esteja prestes a acontecer. A mais velha, de cabeça branca, carrega uma gravidade serena no semblante; serenidade de quem soube cultivar o pote de barro que abriga a sabedoria aquosa de uma geração inteira. A do meio, de vestido vermelho, trás nos passos o peso da maturidade atravessado por memórias traumáticas, experiências de rachar o pote da mais resistente argila que se possa imaginar. A mais nova, de tomara que caia, embora ostente a vitalidade e impaciência, próprios da juventude, parece harmonizar em si as energias, angústias e expectativas das outras irmãs; o pote encontra-se de modo iminente sobre sua cabeça e pouco há a se fazer para mudar esta situação. 
A mesa, revestida de tolha de tecido florido, permite-lhes o encontro rotineiro para as trocas. Reúnem-se ali, ao centro da casa-cozinha-sala, acomodadas nos seus banquinhos de madeira crua. A conversa, em tom de solilóquio-solipsista, raramente se reverbera na troca de olhares entre elas. Fitam o infinito a sua frente, mas não com o desejo de repousar os olhos na solidão ou no vazio, e sim com o propósito de me encontrar na outra margem do rio que nos separa. E me encontra sempre, por mais que eu me recuse a permanecer olhando-as de frente. O olhar encantado das irmãs-matintas que são (?), exerce influência sobre mim, enleva a pele, enfeitiça e paralisa o movimento das sombras platônicas que ainda povoam a gruta de ideias constituída culturalmente em minha cabeça. Como flechas enfeitiçadas, suas palavras cortam o ar, atravessam o rio, rompem as paredes – a quarta, sobretudo – e conduzem meu olhar para o espelho d’água turvo que nos separa-cerca.       
A natureza tem seus truques e quis ela que nosso espelho d’água fosse feito por águas barrentas, cujo reflexo não revelasse de modo imediato e límpido nossa imagem refletida. Talvez uma precaução contra o possível narcisismo que poderia se desenvolver por estas paragens. Então, olho, mas não me vejo no rio, não me reconheço imediatamente neste espelho mágico capaz de revelar uma porção significativa do que sou ou do que me tornei. “– Preciso me umedecer nestas águas barrentas” é a conclusão mais dura que as três habitantes da casa me fazem perceber. Tornei-me uma pessoa seca, numa terra, paradoxalmente, seca. É pelo olhar e pelas palavras encantadas das três pajés (?) que percebo, então, esse ardil estabelecido neste lugar de abundante água, com gente de natureza seca, como eu.
E, no entanto, não basta chegar a esta constatação. Elas desejam mais. Como se quisessem me fazer enxergar com outros olhos, colocar em ebulição a água que existe em mim. O aprendizado, então, vem sob forma de mnemósines. A janela-portal, ao fundo, permite o miraculoso lapso espaço-temporal para que elas revivam suas reminiscências de família. E no ato extraordinário de furtar o tempo presente para me fazer aprender com o passado – seja com a brincadeira de transformar a toalha de mesa em boi bumba, seja com as rezas e benzedeiras pra curar cobreiro – sou levado à gruta – não platônica – de minhas pequenas lembranças.      
Vazante: Tal como a casa do rio das irmãs-curandeiras (?), nosso assoalho era de tábuas, com abundantes e generosas frestas que permitiam ver o alagado que corria por baixo. A vila no bairro do Jurunas, de minha infância na década de 80, era completamente tomada por este cenário: casas de madeira construídas por sobre o igapó nas proximidades do rio Guamá. Era divertido deitar de barriga pra baixo e espiar, pelas frestas, as coisas que navegavam por baixo da casa: cabeças de boneca, sacos plásticos, tufos de mato, pedaços de paus, latas de óleo, leite ninho... A água, que por ali passava, brincava de se aproximar e se afastar do assoalho. Havia dias em que a água estava tomada pela lama escura e não dava pra identificar os objetos. Então, eu e meu irmão mais novo, amarrávamos um imã num pedaço de fio, enfiávamos por entre as gretas das tábuas e disputávamos pra ver quem pescava mais moedas de cruzeiro. Às vezes a pesca era tão boa que até dava pra interar e comprar dois chopes de ki-suco de uva. Mas na maioria das vezes valia mesmo só pela expectativa de pescar algo inusitado naquele rio que passava debaixo de casa.
Tal como acontece na casa do rio das irmãs-assombrações (?), era comum faltar luz em casa. Eu e meus irmãos reagíamos imediatamente com medo e apreensão das coisas que poderiam acontecer no escuro; meus pais, por sua vez, ficavam indignados com a situação e temiam mais os vivos do que as assombrações. Corríamos pra procurar os tocos de vela que ficavam guardados, segundo meu pai, “em cima do petisqueiro”. Três eram acesas, no máximo, e ficavam afixadas em cima da lata de leite, e dos potes de arroz e feijão. Quando meus pais se distraiam, brincávamos de passar o dedo na chama da vela; me sentia o super-homem fazendo isso sem queimar o dedo. Depois vinham as brincadeiras de criar sombras animadas que se formavam na parede. Invariavelmente isso acabava levando as histórias de assombrações que íamos criando na hora. Quando a luz voltava era possível ouvir os gritos de comemoração da vizinhança inteira – coisas do tipo: gol da seleção brasileira numa copa do mundo. Mas ainda aproveitamos uma última brincadeira com as velas que ainda estavam acesas: reuníamos ao seu redor, catávamos o “parabéns pra você” e, juntos, assoprávamos as velas. Era demais.
Tal como acontece na casa do rio, eu vivia bichado com males que nenhum médico conseguia diagnosticar. Meu principal problema, segundo atestava a sabedoria milenar de dona Guita, era “peito aberto”. Eu ficava tomado por uma dificuldade de realizar uma respiração profunda, me cansava muito facilmente perdendo o fôlego para realizar pequenas peraltices de moleque, como brincar de pira mãe ou de bandeirinha. Mamãe me tomava pelas mãos e me levava à humilde casa de madeira, de apenas dois cômodos e de telhado de palha, da prestigiada curandeira. Por vezes, aguardávamos na sala enquanto ela realizava suas rezas em outros pacientes. Isso me deixava muito tenso, pois era possível escutar as ladainhas que ela entoava no cômodo ao lado, pois a divisória era simplesmente uma cortina de tecido florido. Chegada minha vez eu tirava a camisa, deitava de peito pra cima e recebia as rezas de dona Guita. Enquanto rezava, ela levava seu polegar direito contra o meu corpo e ia fazendo o sinal da cruz, principalmente no meu peito – isso me dava uma agonia atroz e até hoje sofro quando alguém tenta tocar no meu plexo solar. Em seguida, ela depositava uma moeda de cruzeiro no centro do meu peito, acendia um toco vela e a colocava sobre a moeda; cantava alguma coisa, elevava seus olhos pro céu e tapava a vela com um copo de vidro. Eu apertava a mão da mamãe e fechava os olhos morrendo de medo. Quando a chama da vela se apagava, dona Guita colocava um pedaço de emplasto sabiá no centro do meu peito e fazia as mesmas recomendações de sempre: “– Ele não pode correr e nem fazer esforço até o emplasto se descolar completamente do corpo”. Então, eu amargava algumas semanas de tédio sem poder brincar de verdade, como todo moleque do Jurunas.       
Tal como acontece na casa do rio, chovia bastante dentro e fora da minha casa, nos meus tempos de garoto. Os pingos de chuva castigavam as telhas de barro do nosso telhado, principalmente em nosso período mais chuvoso. A casa não possuía forro e os respingos da chuva forçavam mamãe a insistir para ficarmos debaixo das sombrinhas, mesmo dentro de casa. Outro refugio era debaixo do beliche que transformávamos em cabanhinha, usando os lençóis como paredes. Dormir ouvindo o barulho da chuva no telhado, sem dúvida, tornava o sono mais gostoso. Menos pros meus pais que conseguiam enxergar a ameaça que as chuvas traziam: as águas subiam e invadiam o assoalho, indo por vezes bater bem próximo dos colchões da cama. Geladeira e fogão ficavam suspensos em pés improvisados de tijolos. A rua se transformava num verdadeiro rio, se reencontrava com sua ancestralidade. O que me cabia fazer era aproveitar para brincar com barquinhos de papel. Os moleques da rua tinham brincadeiras bem menos inocentes: pescavam mussum para decepar suas cabeças com terçados, pelo simples prazer de vê-los se debaterem em espasmos até a morte. Aquela situação de “alagamento”, no entanto, não era vista por meus pais e vizinhos, pelo olhar inocente (?) e lúdico de uma criança. As águas eram vistas como um tormento que precisava ser superado. A vila começou a ser aterrada. Dezenas de carradas de aterro foram usadas para elevar o nível da vila ao da pista. Começou uma corrida entre os vizinhos para aterrar, o mais rápido possível, o terreno debaixo de suas casas, pois ao elevar o nível do chão da vila as águas, inevitavelmente, escorriam pra baixo delas. Nossa casa foi uma das últimas a conseguir erradicar esse problema por completo, levando aproximadamente uma década – e quase uma dezena de carradas de aterro – para conseguir expulsar todo aquele rio que nos cercava. Por fim, tornei-me um ser que lutou desesperadamente contra as águas. Queria o terreno seco. Desejei a terra seca, o piso de concreto com lajotas, as paredes de tijolo rebocado substituindo a madeira encharcada das tábuas podres que precisam ser substituídas com bastante freqüência. Passei a sonhar com uma laje que me protegesse dos respingos da chuva. Queria, a qualquer custo, alcançar o sonho de consumo de todo Jurunense àquela altura, isto é, queria tirar o pé da água. E isso pode ter custado muito caro pra um povo que não se deu conta de lutar contra sua própria natureza.
O Barco: A casa do rio, montagem teatral que comemora os cinqüenta anos do Grupo Gruta de Teatro, proporciona um aprendizado estético-poético inestimável para uma cidade como Belém do Pará, acostumada a dar as costas para o rio e a culpar a chuva por suas mazelas sociais. Como um barco navegando por nossa ancestralidade liquida, a montagem nos provoca a olhar para as águas turvas do rio Guamá e reconhecer nelas, o espelho genuíno capaz de nos mostrar sem véus. No entanto, não é um exercício simples de se fazer, pois requer um ajuste de percepção que, talvez, somente a arte tenha capacidade de proporcionar. Um dos problemas a enfrentar é saber o quanto nossa percepção já foi assoreada, vindo a repousar nossas expectativas no porto seguro e não no fluxo continuo do rio.
Talvez exatamente por isso, a montagem se estabeleça, no meu entendimento, por meio de uma encenação sensivelmente icônica que opta, com voracidade, por uma atuação predominantemente épica. A dramaturgia – também icônica – somada à atuação épica das três atrizes – Astrea Lucena, Monalisa da Paz e Waléria Costa, que faço questão de citar os nomes por reconhecer que suas trajetórias artísticas têm muito a ensinar aos que estão dispostos a fazer teatro em nossa cidade; ensinamento estético, poético, político e, sobretudo, ético – gera um potente amalgama criativo que não permite a contemplação incólume do público. Quem fala com olhar estarrecedor e nos confronta na platéia não é a personagem de uma fábula fechada, tão pouco a atuante que pretende nos provocar o efeito D, e nem a própria pessoa das atuantes. O que se apresenta aos nossos olhos são três entidades de realidade fantástica que agregam em si a potência e características mencionadas acima. Apresentam-se, portanto, a meu ver, como seres capazes de nos inquirir na atmosfera civil – sem que sua fala se confunda com um panfleto ideológico – mas também na atmosfera estética – sem se tornar entretenimento ingênuo e casual e nem incorrer em clichês popularescos ou folclóricos.
Seguinte esta perspectiva, considero, no mínimo, instigante a trama na qual as três entidades se encontram enredadas. Há entre elas a inexorável responsabilidade da transmissão dos valores do seu tempo e lugar – o pote de barro que abriga toda sabedoria de uma geração. Fiquei instigado a pensar estas entidades – a mais velha, de cabeça branca, a do meio, de vestido vermelho e a mais nova, de tomara que caia – como ícones das três últimas gerações de fazedores de teatro na cidade. Com qual delas o Gruta se identifica? Com qual delas eu me identifico? Com qual delas tantos outros grupos importantes da cidade – Grupo Cuíra, Cia Atores Contemporâneos, Grupo Palha, Cia dos Notáveis Clowns, In Bust Teatro com Bonecos, Palhaços Trovadores, Grupo Usina, Teatro de Apartamento, Grupo de Teatro Encenação Cultural do Pará, Cia Teatral Nós Outros, Trupe Nós Os Pernaltas, pra citar apenas alguns – se identificam?  
Sinceramente não sei responder estas perguntas, mas sei o quanto é importante saber quem carrega atualmente o pote, se preserva a sabedoria de luta e resistência erguida na cidade nas últimas décadas (sete pelo menos), se recolhe novos aprendizados e a quem pretende repassar a guarda futuramente. A água preciosa chamada Teatro que nele carregamos, precisa ser preservada e repassada as novas gerações. Qualquer ação que negligencie este aspecto joga com o risco de não umedecer as futuras gerações do teatro em Belém.
Preciso me umedecer pro teatro e pra vida e a montagem teatral do Gruta me arremessa esta verdade na cara, sem nenhuma cerimônia. Olho para a mais velha, de cabeça branca, e encontro nela o elemento provocador que me faz querer ser cada vez mais como ela: íntegra e intensa nas suas experiências, grave e serena com as palavras no palco e na própria vida. Ela me transmite a ideia de que é preciso se umedecer para bem envelhecer. Infelizmente nem todos envelhecem como o José Celso Martinez – com vitalidade pra luta, energia anárquica e capacidade antropofágica auto-regenerativa. Alguns envelhecem como o Luis Inácio Lula da Silva – se adaptando as condições nefastas, preterindo as convicções ideológicas e apertando a mão dos algozes de outrora.  
Contra todas as ameaças que pairam no horizonte, precisamos nos umedecer. Umedecer, a terra, o palco e a vida.  

25 de novembro de 2017.

Ficha Técnica
Montagem teatral:
A Casa do Rio
Grupo Gruta de Teatro
Texto:
Adriano Barroso
Direção:
Henrique da Paz
Elenco:
Astréa Lucena, Monalisa da Paz e Waléria Costa
Cenário:
Boris Knez e Aldo Paz
Figurino:
Jeferson Cecim
Maquiagem:
Mariana Paz Barroso
Cabelos:
Germana Chalu
Iluminação:
Sonia Lopes
Assistente de iluminação:
John Rente.
Produção:
Belle Paiva Tati Brito

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Mais flores, por favor! – Por Edson Fernando

Montagem Teatral: Falando sobre flores
Autor da crítica: Ator e Diretor Teatral; Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Considerações em terceira pessoa
Montagens teatrais que assumem como tarefa abordar questões de caráter histórico são extremamente relevantes. Sabemos que o Teatro não precisa estar a serviço de nada para validar seu discurso e/ou linguagem, mas quando consegue estabelecer relações profícuas com outras áreas de conhecimento, torna sua existência ainda mais interessante. Os artistas que tomam esta tarefa pra si, no entanto, precisam garantir o equilíbrio e harmonia dos elementos incomuns ao jogo estético, para que eles não se transformem em ruídos estrondosos capazes de comprometer a natureza específica da própria obra artística. Quando isto ocorre, invariavelmente, as chances do Teatro se tornar uma ferramenta ou um panfleto a serviço de algo, aumentam exponencialmente.   
A montagem teatral “Falando sobre flores” assume esta tarefa ao eleger como eixo central de sua dramaturgia e encenação o período da ditadura militar brasileira, ocorrido de 1964 a 1985. São dois atuantes em cena, Demi Araujo e Renan Coelho, nos confrontando diretamente com as personas de um militar e de um membro do movimento da resistência política armada, respectivamente. A partir destes personagens antagônicos a montagem tenta zelar, precariamente, por uma abordagem que nos possibilite avaliar os pontos positivos e negativos deste período da história brasileira. A tentativa é “precária”, pois opta nos mostrar o confronto a partir da uma cela do DOPS – Departamento de Ordem Política e Social –, transformando rápida e decisivamente os antagonistas em torturador e torturado, respectivamente. E ao fazê-lo, induz nosso olhar para uma empatia com este último, pois o apresenta numa situação de co-relação de forças desigual, em condições miseráveis e exposto a atos humilhantes. Difícil julgar imparcialmente neste contexto.   
A montagem se estrutura, então, a partir de quadros realistas que revelam o modo de tratamento destinado aos presos políticos do “regime”. Os quadros são intercalados por depoimentos de ambos os personagens (?) que chocam seus “pontos de vista” sobre a conjuntura nacional naquele período traçando ainda, em alguns momentos, relação com o atual quadro político do país. Os depoimentos intercalando os quadros realistas permitem inferir o desejo da montagem em equacionar, de modo imparcial, dados históricos para que o espectador tire sua própria conclusão sobre o período do governo militar. Tal procedimento, no entanto, se vê comprometido exatamente pela força dramática dos quadros, pois eles, como dito anteriormente, induzem à empatia com a parte mais frágil do embate, isto é, com o torturado.    
Não fica claro também se os depoimentos intercalando os quadros são proferidos pelos atuantes – Demi e Renan – ou pelos personagens – torturador e torturado. Esta dúvida fragiliza, sobretudo, a defesa dos argumentos pró “regime militar”, pois soa falso o discurso exaltando avanços e conquistas na área da economia, saúde e educação. Assim, mais uma vez, a balança pende a favor de um posicionamento político que nos induz a reprovação da ditadura militar. Tomar partido sobre a questão não é o problema – é importante não esquecer que a imparcialidade científica, política ou filosófica é um mito –, mas isso depõe contra a montagem na medida em que a mesma deseja que o próprio espectador julgue e tire sua conclusão sobre o tema.        
Considerações em primeira pessoa
Os quadros realistas que a montagem apresenta, embora mantenham certo grau de fidelidade com os fatos históricos – e aqui se encontra um grande mérito da montagem – , não me comovem, atravessam ou me provocam a pensar sopre o tema por um lugar novo. A sensação de “mais, do mesmo” se impõe à medida que os quadros são apresentados. Talvez falte ousadia ao abordar o tema – a falta de ousadia, aliás, parece se impor a todos os setores da sociedade que seguem em estado de letargia profunda. Talvez a conjuntura do país seja tão absurdamente dramática e nefasta a ponto de arrefecer minha recepção desta obra. Ou talvez ainda eu, simplesmente, esteja projetando meus anseios e inquietações na montagem. O que posso afirmar com convicção é a minha sensação crescente de que estamos tomados por um torpor indolente que parece se alojar nas diversas e variadas tentativas de atos de resistência, de rebeldia, de insubordinação, de desobediência civil, de insurreição, de motim, de levante, de revolta, de desordem, de revolução... Tenho acreditado, cada vez mais, que estes estados ou atos de resistência devem ser testados, despudoradamente, em nossos pequenos atos cotidianos, em nossos modos de existência, em nossa arte, em nossa escrita, em nossos amores e dores. Nada pode escapar a tentativa de encontrar novamente o princípio gerador do “caos criativo”, princípio que irá embaralhar as cartas marcadas deste jogo espúrio que se tornou viver no Brasil de 2017.  
E assim, em meio ao turbilhão de incoerências que atravessamos no país, “Falando sobre flores” embora se constitua, na minha percepção, com o “mais, do mesmo”, os quadros da montagem me permitem estabelecer paralelos que se cruzam na insólita, mas não remota, possibilidade da ascensão de um novo regime ditatorial no Brasil. Neste contexto e sem me preocupar com a acusação de auto plágio apresento, portanto, a seguir, um texto que postei recentemente no Facebook, no qual reflito sobre o fantasma da intervenção militar que nos ronda novamente. É importante não esquecer que se trata de paralelos que cruzam: a montagem teatral “Falando sobre flores”, o texto intitulado “Fumaça, muita Fumaça!!!”. Deixo a cargo de leitor/espectador a tarefa de cruzá-los do modo que julgar conveniente, ou mesmo sequer cruzá-los. Desobediência é o mote.        
Fumaça, muita fumaça!!!
“Intervenção Militar Já” é o que se lê na faixa de um pequeno grupo de manifestantes que protestam ao som de “hinos patrióticos”, no ultimo domingo (22.10), na rua da Paz – ao lado do Teatro da Paz. Esta manifestação não me causou nenhum assombro. São pessoas alinhadas ao pensamento do que podemos chamar de “extrema direita”, dentro do confuso cenário político brasileiro. Na minha percepção, a manifestação arregimenta lentamente alguns simpatizantes, mas ainda recebeu a esmagadora indiferença dos que circulavam pela Praça da República. Embora não a considere inofensiva – seria muita ingenuidade de minha parte – ela não é o que me assombra e inquieta na conjuntura nacional. O que me assombra é o silêncio e apatia dos demais setores da sociedade civil diante do vilipendiamento da nação.
Não há em curso no país nenhuma reação enérgica de algum setor da sociedade civil que consiga dialogar e mobilizar os cidadãos de modo direto e simples, canalizando o sentimento de revolta e indignação, presentes na população, diante do escândalo que se transformou o nosso regime de democracia representativa alicerçada nos três poderes – executivo, legislativo e judiciário. Não conseguimos construir uma via de mobilização nacional que lute pela reconstituição do regime – uma nova Constituinte, por exemplo, formada somente por membros da sociedade civil sem vinculação com as instituições partidárias vigentes.
Ao invés disso, “grupos de poder” lutam entre si tentando extrair da miserável e degradante situação, capital político para se manter ou retornar ao poder. Se cristaliza, com o passar do tempo, o enredo nefasto que mais uma vez tentará nos vender a retórica simplista de que contra o inimigo “nazi-facista”, encarnado pela figura do deputado Jair Bolsonaro, devemos votar no “menos pior”. Nesta perspectiva se equivalem a “direita” e a “esquerda” – uso as convenções partidárias estabelecidas, sabendo que não há muita diferença no projeto de poder de ambas – e tanto faz os candidatos que despontam como adversários capazes de enfrentar e vencer Bolsonaro. Tanto faz o Dória, Ciro Gomes, Marina ou o Lula. Todos estão enredados no vil jogo de poder plutocrata que se transformou o regime democrático brasileiro.
Desse modo, na estratégia de alto risco que vem se delineando para a disputa presidencial de 2018, Bolsonaro é o adversário ideal para “direita” e “esquerda”, pois sua personalidade tragi-bulfônica constrói uma cortina de fumaça capaz de obnubilar a percepção política, arrefecendo a consciência crítica para personalidades tão ou mais controversas politicamente, tais como o atual prefeito de São Paulo, João Doria ou o ex-presidente Lula, dentre outros. O que esperar deste último, por exemplo, quando vemos na sua trajetória política fatos no mínimo inusitados como acordos políticos selados, sem nenhum pudor ideológico, com personalidades marcadamente cínicas e corruptas como Paulo Maluf, José Sarney, Jader Barbalho, Michel Temer... Luis Inácio Lula da Silva representa muito bem a escória da classe política brasileira e não tenho dúvidas que ele apertará a mão do próprio Jair Bolsonaro se julgar conveniente para seus planos políticos. E, no entanto, tentam nos fazer acreditar que há mocinhos e vilões. Votando, então, no “menos pior”, dentre aqueles, querem nos fazer acreditar que as instituições seguem em pleno funcionamento, ilibadas, autônomas, soberanas e defensoras dos direitos dos reles mortais.
Como se assombrar com um punhado de fanáticos fazendo apologia a intervenção militar quando temos uma nação inteira incapaz de exorcizar os fantasmas, espantalhos e arremedos de um regime que se diz democrático? A democracia brasileira sangra há décadas e os que fazem parte do seleto circulo do poder desejam que assim permaneça, por um motivo simples: são vampiros sedentos da nossa jugular. A retórica publicitária do golpe contra a ex-presidente Dilma só ajudou a segregar ainda mais os fronts de resistência contra os posicionamentos ultraconservadores, posto que colocou em lados diferentes “petralhas” e “coxinhas” que seguem, estupidamente, trocando farpas entre si, quando em verdade não se distinguem no projeto de poder que colocaram em prática.
E enquanto não conseguirmos ultrapassar a cortina de fumaça fúnebre acessa a partir dos escombros da democracia brasileira, Bolsonaro e os fanáticos que clamam por intervenção militar, na minha percepção, apenas adicionam o combustível de alta periculosidade no cenário de guerra que já vivemos há muito tempo.
Mais flores...
Quem julga as flores por sua aparente doçura e candura se esquece do perfume do Louro-da-Montanha, da Tasneirinha, do Veratrum, da Cerbera Odollam, da Sanguinaria Canadesis, da Adenium Obesum e da Oenanthe Crocata. Exorto todas estas flores oferecendo-as aos que insistem em se manter inertes. Mais flores, por favor.
 02 de Novembro de 2017.

Montagem teatral:
Falando Sobre Flores
Direção:
Karine Jansen
Dramaturgia:
Renan Coelho
Atores:
Demi Araújo e Renan Coelho
Iluminação:
Luciana Porto
Sonoplastia:
Jairo dos Anjos
Aderecista:

João Calado