sábado, 25 de novembro de 2017

Terra Seca, Gente Seca. E o Rio... – Por Edson Fernando

Montagem teatral: A Casa do Rio, Grupo Gruta de Teatro.
Autor da crítica: Edson Fernando, Ator diretor e coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.

Preamar: Elas já se encontram na casa quando chegamos. Passeiam inquietamente pelos cômodos, como se esperassem por alguém ou por algo muito importante que talvez esteja prestes a acontecer. A mais velha, de cabeça branca, carrega uma gravidade serena no semblante; serenidade de quem soube cultivar o pote de barro que abriga a sabedoria aquosa de uma geração inteira. A do meio, de vestido vermelho, trás nos passos o peso da maturidade atravessado por memórias traumáticas, experiências de rachar o pote da mais resistente argila que se possa imaginar. A mais nova, de tomara que caia, embora ostente a vitalidade e impaciência, próprios da juventude, parece harmonizar em si as energias, angústias e expectativas das outras irmãs; o pote encontra-se de modo iminente sobre sua cabeça e pouco há a se fazer para mudar esta situação. 
A mesa, revestida de tolha de tecido florido, permite-lhes o encontro rotineiro para as trocas. Reúnem-se ali, ao centro da casa-cozinha-sala, acomodadas nos seus banquinhos de madeira crua. A conversa, em tom de solilóquio-solipsista, raramente se reverbera na troca de olhares entre elas. Fitam o infinito a sua frente, mas não com o desejo de repousar os olhos na solidão ou no vazio, e sim com o propósito de me encontrar na outra margem do rio que nos separa. E me encontra sempre, por mais que eu me recuse a permanecer olhando-as de frente. O olhar encantado das irmãs-matintas que são (?), exerce influência sobre mim, enleva a pele, enfeitiça e paralisa o movimento das sombras platônicas que ainda povoam a gruta de ideias constituída culturalmente em minha cabeça. Como flechas enfeitiçadas, suas palavras cortam o ar, atravessam o rio, rompem as paredes – a quarta, sobretudo – e conduzem meu olhar para o espelho d’água turvo que nos separa-cerca.       
A natureza tem seus truques e quis ela que nosso espelho d’água fosse feito por águas barrentas, cujo reflexo não revelasse de modo imediato e límpido nossa imagem refletida. Talvez uma precaução contra o possível narcisismo que poderia se desenvolver por estas paragens. Então, olho, mas não me vejo no rio, não me reconheço imediatamente neste espelho mágico capaz de revelar uma porção significativa do que sou ou do que me tornei. “– Preciso me umedecer nestas águas barrentas” é a conclusão mais dura que as três habitantes da casa me fazem perceber. Tornei-me uma pessoa seca, numa terra, paradoxalmente, seca. É pelo olhar e pelas palavras encantadas das três pajés (?) que percebo, então, esse ardil estabelecido neste lugar de abundante água, com gente de natureza seca, como eu.
E, no entanto, não basta chegar a esta constatação. Elas desejam mais. Como se quisessem me fazer enxergar com outros olhos, colocar em ebulição a água que existe em mim. O aprendizado, então, vem sob forma de mnemósines. A janela-portal, ao fundo, permite o miraculoso lapso espaço-temporal para que elas revivam suas reminiscências de família. E no ato extraordinário de furtar o tempo presente para me fazer aprender com o passado – seja com a brincadeira de transformar a toalha de mesa em boi bumba, seja com as rezas e benzedeiras pra curar cobreiro – sou levado à gruta – não platônica – de minhas pequenas lembranças.      
Vazante: Tal como a casa do rio das irmãs-curandeiras (?), nosso assoalho era de tábuas, com abundantes e generosas frestas que permitiam ver o alagado que corria por baixo. A vila no bairro do Jurunas, de minha infância na década de 80, era completamente tomada por este cenário: casas de madeira construídas por sobre o igapó nas proximidades do rio Guamá. Era divertido deitar de barriga pra baixo e espiar, pelas frestas, as coisas que navegavam por baixo da casa: cabeças de boneca, sacos plásticos, tufos de mato, pedaços de paus, latas de óleo, leite ninho... A água, que por ali passava, brincava de se aproximar e se afastar do assoalho. Havia dias em que a água estava tomada pela lama escura e não dava pra identificar os objetos. Então, eu e meu irmão mais novo, amarrávamos um imã num pedaço de fio, enfiávamos por entre as gretas das tábuas e disputávamos pra ver quem pescava mais moedas de cruzeiro. Às vezes a pesca era tão boa que até dava pra interar e comprar dois chopes de ki-suco de uva. Mas na maioria das vezes valia mesmo só pela expectativa de pescar algo inusitado naquele rio que passava debaixo de casa.
Tal como acontece na casa do rio das irmãs-assombrações (?), era comum faltar luz em casa. Eu e meus irmãos reagíamos imediatamente com medo e apreensão das coisas que poderiam acontecer no escuro; meus pais, por sua vez, ficavam indignados com a situação e temiam mais os vivos do que as assombrações. Corríamos pra procurar os tocos de vela que ficavam guardados, segundo meu pai, “em cima do petisqueiro”. Três eram acesas, no máximo, e ficavam afixadas em cima da lata de leite, e dos potes de arroz e feijão. Quando meus pais se distraiam, brincávamos de passar o dedo na chama da vela; me sentia o super-homem fazendo isso sem queimar o dedo. Depois vinham as brincadeiras de criar sombras animadas que se formavam na parede. Invariavelmente isso acabava levando as histórias de assombrações que íamos criando na hora. Quando a luz voltava era possível ouvir os gritos de comemoração da vizinhança inteira – coisas do tipo: gol da seleção brasileira numa copa do mundo. Mas ainda aproveitamos uma última brincadeira com as velas que ainda estavam acesas: reuníamos ao seu redor, catávamos o “parabéns pra você” e, juntos, assoprávamos as velas. Era demais.
Tal como acontece na casa do rio, eu vivia bichado com males que nenhum médico conseguia diagnosticar. Meu principal problema, segundo atestava a sabedoria milenar de dona Guita, era “peito aberto”. Eu ficava tomado por uma dificuldade de realizar uma respiração profunda, me cansava muito facilmente perdendo o fôlego para realizar pequenas peraltices de moleque, como brincar de pira mãe ou de bandeirinha. Mamãe me tomava pelas mãos e me levava à humilde casa de madeira, de apenas dois cômodos e de telhado de palha, da prestigiada curandeira. Por vezes, aguardávamos na sala enquanto ela realizava suas rezas em outros pacientes. Isso me deixava muito tenso, pois era possível escutar as ladainhas que ela entoava no cômodo ao lado, pois a divisória era simplesmente uma cortina de tecido florido. Chegada minha vez eu tirava a camisa, deitava de peito pra cima e recebia as rezas de dona Guita. Enquanto rezava, ela levava seu polegar direito contra o meu corpo e ia fazendo o sinal da cruz, principalmente no meu peito – isso me dava uma agonia atroz e até hoje sofro quando alguém tenta tocar no meu plexo solar. Em seguida, ela depositava uma moeda de cruzeiro no centro do meu peito, acendia um toco vela e a colocava sobre a moeda; cantava alguma coisa, elevava seus olhos pro céu e tapava a vela com um copo de vidro. Eu apertava a mão da mamãe e fechava os olhos morrendo de medo. Quando a chama da vela se apagava, dona Guita colocava um pedaço de emplasto sabiá no centro do meu peito e fazia as mesmas recomendações de sempre: “– Ele não pode correr e nem fazer esforço até o emplasto se descolar completamente do corpo”. Então, eu amargava algumas semanas de tédio sem poder brincar de verdade, como todo moleque do Jurunas.       
Tal como acontece na casa do rio, chovia bastante dentro e fora da minha casa, nos meus tempos de garoto. Os pingos de chuva castigavam as telhas de barro do nosso telhado, principalmente em nosso período mais chuvoso. A casa não possuía forro e os respingos da chuva forçavam mamãe a insistir para ficarmos debaixo das sombrinhas, mesmo dentro de casa. Outro refugio era debaixo do beliche que transformávamos em cabanhinha, usando os lençóis como paredes. Dormir ouvindo o barulho da chuva no telhado, sem dúvida, tornava o sono mais gostoso. Menos pros meus pais que conseguiam enxergar a ameaça que as chuvas traziam: as águas subiam e invadiam o assoalho, indo por vezes bater bem próximo dos colchões da cama. Geladeira e fogão ficavam suspensos em pés improvisados de tijolos. A rua se transformava num verdadeiro rio, se reencontrava com sua ancestralidade. O que me cabia fazer era aproveitar para brincar com barquinhos de papel. Os moleques da rua tinham brincadeiras bem menos inocentes: pescavam mussum para decepar suas cabeças com terçados, pelo simples prazer de vê-los se debaterem em espasmos até a morte. Aquela situação de “alagamento”, no entanto, não era vista por meus pais e vizinhos, pelo olhar inocente (?) e lúdico de uma criança. As águas eram vistas como um tormento que precisava ser superado. A vila começou a ser aterrada. Dezenas de carradas de aterro foram usadas para elevar o nível da vila ao da pista. Começou uma corrida entre os vizinhos para aterrar, o mais rápido possível, o terreno debaixo de suas casas, pois ao elevar o nível do chão da vila as águas, inevitavelmente, escorriam pra baixo delas. Nossa casa foi uma das últimas a conseguir erradicar esse problema por completo, levando aproximadamente uma década – e quase uma dezena de carradas de aterro – para conseguir expulsar todo aquele rio que nos cercava. Por fim, tornei-me um ser que lutou desesperadamente contra as águas. Queria o terreno seco. Desejei a terra seca, o piso de concreto com lajotas, as paredes de tijolo rebocado substituindo a madeira encharcada das tábuas podres que precisam ser substituídas com bastante freqüência. Passei a sonhar com uma laje que me protegesse dos respingos da chuva. Queria, a qualquer custo, alcançar o sonho de consumo de todo Jurunense àquela altura, isto é, queria tirar o pé da água. E isso pode ter custado muito caro pra um povo que não se deu conta de lutar contra sua própria natureza.
O Barco: A casa do rio, montagem teatral que comemora os cinqüenta anos do Grupo Gruta de Teatro, proporciona um aprendizado estético-poético inestimável para uma cidade como Belém do Pará, acostumada a dar as costas para o rio e a culpar a chuva por suas mazelas sociais. Como um barco navegando por nossa ancestralidade liquida, a montagem nos provoca a olhar para as águas turvas do rio Guamá e reconhecer nelas, o espelho genuíno capaz de nos mostrar sem véus. No entanto, não é um exercício simples de se fazer, pois requer um ajuste de percepção que, talvez, somente a arte tenha capacidade de proporcionar. Um dos problemas a enfrentar é saber o quanto nossa percepção já foi assoreada, vindo a repousar nossas expectativas no porto seguro e não no fluxo continuo do rio.
Talvez exatamente por isso, a montagem se estabeleça, no meu entendimento, por meio de uma encenação sensivelmente icônica que opta, com voracidade, por uma atuação predominantemente épica. A dramaturgia – também icônica – somada à atuação épica das três atrizes – Astrea Lucena, Monalisa da Paz e Waléria Costa, que faço questão de citar os nomes por reconhecer que suas trajetórias artísticas têm muito a ensinar aos que estão dispostos a fazer teatro em nossa cidade; ensinamento estético, poético, político e, sobretudo, ético – gera um potente amalgama criativo que não permite a contemplação incólume do público. Quem fala com olhar estarrecedor e nos confronta na platéia não é a personagem de uma fábula fechada, tão pouco a atuante que pretende nos provocar o efeito D, e nem a própria pessoa das atuantes. O que se apresenta aos nossos olhos são três entidades de realidade fantástica que agregam em si a potência e características mencionadas acima. Apresentam-se, portanto, a meu ver, como seres capazes de nos inquirir na atmosfera civil – sem que sua fala se confunda com um panfleto ideológico – mas também na atmosfera estética – sem se tornar entretenimento ingênuo e casual e nem incorrer em clichês popularescos ou folclóricos.
Seguinte esta perspectiva, considero, no mínimo, instigante a trama na qual as três entidades se encontram enredadas. Há entre elas a inexorável responsabilidade da transmissão dos valores do seu tempo e lugar – o pote de barro que abriga toda sabedoria de uma geração. Fiquei instigado a pensar estas entidades – a mais velha, de cabeça branca, a do meio, de vestido vermelho e a mais nova, de tomara que caia – como ícones das três últimas gerações de fazedores de teatro na cidade. Com qual delas o Gruta se identifica? Com qual delas eu me identifico? Com qual delas tantos outros grupos importantes da cidade – Grupo Cuíra, Cia Atores Contemporâneos, Grupo Palha, Cia dos Notáveis Clowns, In Bust Teatro com Bonecos, Palhaços Trovadores, Grupo Usina, Teatro de Apartamento, Grupo de Teatro Encenação Cultural do Pará, Cia Teatral Nós Outros, Trupe Nós Os Pernaltas, pra citar apenas alguns – se identificam?  
Sinceramente não sei responder estas perguntas, mas sei o quanto é importante saber quem carrega atualmente o pote, se preserva a sabedoria de luta e resistência erguida na cidade nas últimas décadas (sete pelo menos), se recolhe novos aprendizados e a quem pretende repassar a guarda futuramente. A água preciosa chamada Teatro que nele carregamos, precisa ser preservada e repassada as novas gerações. Qualquer ação que negligencie este aspecto joga com o risco de não umedecer as futuras gerações do teatro em Belém.
Preciso me umedecer pro teatro e pra vida e a montagem teatral do Gruta me arremessa esta verdade na cara, sem nenhuma cerimônia. Olho para a mais velha, de cabeça branca, e encontro nela o elemento provocador que me faz querer ser cada vez mais como ela: íntegra e intensa nas suas experiências, grave e serena com as palavras no palco e na própria vida. Ela me transmite a ideia de que é preciso se umedecer para bem envelhecer. Infelizmente nem todos envelhecem como o José Celso Martinez – com vitalidade pra luta, energia anárquica e capacidade antropofágica auto-regenerativa. Alguns envelhecem como o Luis Inácio Lula da Silva – se adaptando as condições nefastas, preterindo as convicções ideológicas e apertando a mão dos algozes de outrora.  
Contra todas as ameaças que pairam no horizonte, precisamos nos umedecer. Umedecer, a terra, o palco e a vida.  

25 de novembro de 2017.

Ficha Técnica
Montagem teatral:
A Casa do Rio
Grupo Gruta de Teatro
Texto:
Adriano Barroso
Direção:
Henrique da Paz
Elenco:
Astréa Lucena, Monalisa da Paz e Waléria Costa
Cenário:
Boris Knez e Aldo Paz
Figurino:
Jeferson Cecim
Maquiagem:
Mariana Paz Barroso
Cabelos:
Germana Chalu
Iluminação:
Sonia Lopes
Assistente de iluminação:
John Rente.
Produção:
Belle Paiva Tati Brito

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